quarta-feira, 25 de março de 2015

Falácias: Apelo à Ignorância e Inversão do Ônus da Prova




Na imagem acima, o personagem do segundo quadro está cometendo uma falácia de Apelo à Ignorância. A sua reação revoltada à fala do apresentador dá a entender que ele não acredita que a Tecpix seja a câmera mais vendida do Brasil. O problema é o motivo que ele parece apresentar para isso: o fato de que ele não conhece ninguém que tenha uma Tecpix. Podemos traduzir o pensamento dele, que é o pensamento de muitas pessoas, da seguinte maneira:

Eu não conheço A
Logo, A não existe

Não é difícil perceber o quanto isso é arrogante e falso. Se alguém não conhece um fato, isso não pode ser usado como prova de que o fato não existe. No caso acima, por exemplo, pode haver muitas explicações para o personagem não conhecer nenhum dono de câmeras Tecpix:

  1. Os amigos dele são de uma classe social mais alta, que não compra aparelhos populares;
  2. Os amigos dele não acharam necessário contar sobre as câmeras Tecpix que têm em casa;
  3. Os amigos dele se arrependem de ter comprado as câmeras e evitam falar sobre o assunto, preferindo discutir a importância do beijo gay para o futuro do país.
Conclusão simples: se você não conhece algo, não quer dizer que esse algo não existe!
Há outra face dessa falácia. Da mesma maneira que desconhecer algo não prova que esse algo não existe, também não é prova suficiente de que esse algo existe. Imagine o seguinte diálogo:

— Você acredita em extraterrestres?
— Não; tenho total certeza de que ETs não existem. Afinal, eu nunca vi nenhum.
— Arrá! Você cometeu uma falácia! Você não pode dizer que ETs não existem só porque você nunca viu nenhum. Logo, eles existem!

Quem está errado nessa conversa? Ambos. Não se pode provar que ETs não existem apenas com base no fato de que nenhum foi visto. Mas também não se pode dizer que, já que a inexistência é impossível de provar, a existência está automaticamente provada.
Dizer que uma coisa existe até prova em contrário é uma falácia-irmã do Apelo à Autoridade, que se chama Inversão do Ônus da Prova. Sua estrutura:

Não há provas de que A não existe
Logo, A existe

O motivo para isso ser uma falácia é simples: quem faz uma afirmação tem a necessidade de provar essa afirmação. Quem duvida da afirmação não precisa provar a falsidade dela (até porque, em muitos assuntos, provar a inexistência de algo é impossível, especialmente se esse algo for imaterial e indetectável). Um exemplo clássico é o do dragão de Carl Sagan, citado em seu livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios” (coloquei no final do texto o link para um vídeo que explica essa alegoria).

Você discorda? Acha que é perfeitamente válido dizer que uma coisa existe e exigir que as outras pessoas provem o contrário? Nesse caso, acho que você concorda coma afirmação feita na imagem abaixo:



Viu a situação? Se você afirma que, digamos, Papai Noel existe, e desafia quem pensa de maneira oposta a provar que ele não existe, você acaba sendo obrigado a aceitar muitas afirmações fantasiosas, porque você também não vai conseguir provar que elas são falsas. O melhor seria você tentar mostrar que o Papai Noel existe, por meio de evidências racionais que sejam compreensíveis para todas as pessoas.

Para finalizar, dois exemplos dessa falácia que aparecem em redações:

“Nunca se ouviu falar de um país em que o comunismo tenha dado certo.”

Pode até ser, mas isso não prova que o comunismo seja automaticamente falho, nem elimina a possibilidade de ele dar certo no futuro.

“As pessoas argumentam que as armas de fogo defendem suas famílias. Mas quantas vezes se ouviu falar de alguém que evitou uma assalto graças a uma arma de fogo?”

Da mesma forma que aconteceu com a Tecpix, há vários motivos para não haver notícias sobre assaltos evitados por armas de fogo: uma explicação é o fato de que um “quase-assalto” não é notícia, enquanto um acidente envolvendo uma arma de fogo é notícia. Dessa maneira, é natural que as pessoas ouçam falar muito pouco de situações em que armas de fogo frustraram assaltos.

Também recomendo que vocês vejam os links abaixo, com mais detalhes e exemplos sobre essas falácias:


O Encoxador Noturno Invisível: https://www.youtube.com/watch?v=Xd8zOpUcYxk
O Dragão Invisível de Carl Sagan: https://www.youtube.com/watch?v=107NOt8aHTY
A proposta do Design Inteligente:  http://www.cienciablogada.com.br/2011/08/descartando-complexidade-irredutivel-do.html

É isso por enquanto. Se você quiser ver mais falácias, é só entrar na seção de comentários de qualquer site grande (Yahoo!, UOL, Terra...) ou procurar na sua timeline do Facebook. Se quiser mais explicações sobre falácias, pode começar pelos links acima e também esperar as que eu vou postar aqui em breve (espero).

Falácias

Uma das maiores revoluções trazidas pela internet foi a democratização da expressão: nunca antes foi tão fácil a uma pessoa normal (que não esteja ligada aos meios de comunicação) expor suas ideias para um público potencial de milhões. Com isso, cada vez mais vemos pessoas argumentando e defendendo seus pontos de vista, sem a necessidade de intermediários.

No entanto, isso também causa um problema: muitas pessoas, por desconhecimento ou desonestidade intelectual, acabam incorrendo em falácias, que são raciocínios aparentemente corretos, mas que contêm falhas lógicas e que, portanto, não podem ser levados a sério. E um agravante é o que eu chamo de “cultura do compartilhamento”: muitas pessoas compartilham textos, vídeos ou imagens sem ter entendido seu significado. Com isso, ideias falaciosas se espalham e acabam ganhando o status de verdades.

Vou usar este espaço para falar de algumas das falácias mais conhecidas, usadas e repisadas. É uma tentativa ingênua de fazer com que as pessoas usem menos esse tipo de recurso e que não sejam enganadas quando alguém tentar usá-lo.


As duas primeiras, que vêm logo em seguida, são “Apelo à Ignorância” e “Inversão do Ônus da Prova”.

domingo, 15 de março de 2015

Direita e Esquerda


(http://andrefreitasillustrations.blogspot.com.br/2014/10/esquerda-caviar-x-coxinhas-de-direita.html)

Diálogo imaginário ocorrido durante uma manifestação.

- E você?
- O que tem eu?
- É de direita ou de esquerda?
- Hmmm... não sei. Nunca pensei em me definir nesses termos.
- Cara, você tem que tomar uma posição! Ser politizado, fazer sua parte nesse momento de crise! É agora ou nunca. A voz do povo tem que ser ouvida! #saidecimadomuro.
- Tá, pode ser... mas como eu decido?
- Vou fazer umas perguntas, você responde e a gente descobre, ok?
- OK.
- O que você acha da corrupção?
- Acho ruim, claro. Acho que os corruptos tem que ser punidos.
- Viu que fácil? Você é de direita.
- Mas também acho que é ingênuo concentrar as acusações sobre a corrupção em um partido ou indivíduo, e esquecer de que as doações de grandes empresas para campanhas políticas, de todos os partidos, são o que realmente alimenta a corrupção. Também acho estranho criticar as atitudes das autoridades e continuar cometendo pequenas corrupções diárias, como falsificar carteira de identidade ou subornar guardas de trânsito.
- Então você é claramente de esquerda. Aposto que também é contra mandar os corruptos pra cadeira elétrica, como eles merecem.
- Eu acho que a pena de morte é ruim. É uma maneira pouco eficaz de combater a criminalidade, porque os criminosos não imaginam que vão ser presos e, portanto, não acham que serão punidos com a pena de morte. Além disso, a pena de morte já é aplicada no Brasil, extra-oficialmente, com as polícias que matam cerca de 2100 pessoas por ano. E isso não está funcionando.
- Viu, eu não disse? Você é um petralha amiguinho de bandido, que acha que tem que deixar marginal impune.
- Não, na verdade eu acho que a impunidade é um problema. Acredito até que os indivíduos têm bastante responsabilidade pelos seus atos e deveriam responder por eles, com penas alternativas, que não necessariamente incluem colocar os infratores em prisões. Acho que eles deveriam pagar multas e trabalhar para pagar sua dívida com a sociedade. E não dizer, simplesmente, que são vítimas do sistema e não têm culpa por suas ações. Existe gente desonesta em todo lugar, inclusive entre os pobres.
- Hmmm... nesse caso, acho que você é um coxinha revoltado. Deve estar torcendo pela volta dos militares, não é?
- De modo algum. Acho que a intervenção militar seria um gigantesco passo atrás para o Brasil. A democracia tem problemas, é verdade, mas é o sistema que mais possibilita a melhoria contínua. Com a ditadura, os desmandos ficam ainda mais ocultos. As pessoas que estão se manifestando pela volta dos militares só podem fazer isso porque não vivem em uma ditadura.
- Essa visão é claramente de esquerda. Você só pode ser um maconheiro do IFCH.
- Não, nunca fumei maconha. Não gosto de drogas.
- Ah, então você é um reacionário que quer proibir as drogas e endurecer a repressão?
- Não... acho que as drogas têm que ser legalizadas, mas com restrições para diminuir ao máximo os danos, assim como ocorre com o álcool e o tabaco. Não é porque eu não gosto de alguma coisa que todo mundo precisa me seguir. As pessoas devem fazer suas próprias escolhas.
- Então, todo mundo pode fazer o que quiser? Isso é coisa de revolucionário anarquista.
- Não, as pessoas têm que arcar com as consequências do que fazem. Então, o governo é necessário para promover um mínimo de justiça nas relações sociais. Por exemplo, é preciso que o governo tenha o monopólio da força, ou as pessoas irão usar a violência para resolver seus problemas e isso não tem como acabar bem.
- Você não confia nas pessoas? Que opinião mais fascista. Já, já, vai me dizer que todo mundo tem que entregar a vida nas mãos de Deus...
- Na verdade, eu não acredito que exista nenhum Deus. Minha opinião é a de que todas as religiões são criações humanas e só continam existindo porque se aproveitam da carência emocional dos fiéis, que querem acreditar em uma existência mais recompensadora após a morte. Acho muito difícil alguém questionar racionalmente os dogmas de sua religião e continuar acreditando nela.
- Caramba! Então você é claramente um ateu esquerdista queimador de Bíblias. Deve estar torcendo pro Brasil virar uma Cuba, onde a religião é perseguida.
- Acho que quem é religioso tem o direito de continuar sendo. Só não pode querer que as ideias da sua religião sejam impostas a toda a população do país. E os governantes precisam ser bem preparados, para conseguir separar o que é uma crença religiosa do que é uma proposta racional para a melhoria do país.
- Então, você acha que o Brasil deve ser governado apenas por pessoas bem preparadas? Se fosse assim, o Lula nunca teria sido presidente. Você está se revelando um verdadeiro tucano neoliberal.
- Bom, eu acredito que não é necessariamente verdade que um político eleito por muitos votos é um bom político. E defendo que as pessoas devem ser valorizadas por seu mérito. Acho até que é perfeitamente válido duas pessoas receberem salários diferentes em uma mesma profissão, devido a diferenças de desempenho.
- Ahá! Não disse? Elitista de direita!
- Por outro lado, a medição do mérito precisa ser pensada com muito cuidado. Não se pode simplesmente assumir que toda pessoa rica mereceu sua fortuna e que toda pessoa pobre está pagando pelos seus próprios erros. Existe muita desigualdade de condições. Por exemplo, uma criança que precisou trabalhar desde os cinco anos de idade não vai ter as mesmas oportunidades educacionais que têm os filhos de pessoas da elite. É preciso tentar aumentar essas oportunidades, e não apenas julgar as pessoas que estão nas classes mais baixas.
- Isso que você falou é muito coisa de marxista barbudo...
- Então, o que você diz? Esquerda ou direita?
- Hmmm... difícil. Vou perguntar pra alguém. Ei, Zé, chega aí. Esse cara aqui, é de direita ou esquerda?
- Direita, ué.
- Como você sabe?
- Ele tá de camiseta amarela e calça azul. Logo, direita. Coxinha, reaça, elite branca, carola, neoliberal, defensor dos cidadãos de bem e da família tradicional. Simples.
- Valeu, Zé. Viu, rapaz? Agora você sabe quem você é. Não é bom sair de cima do muro e virar um cidadão politizado?
- …

sexta-feira, 13 de março de 2015

Senso comum e o medo da discordância



(http://napraxis.blogspot.com.br/2010/10/contra-o-aborto-pela-vida-pena-de-morte.html)

Um dos motivos para as pessoas apelarem para o senso comum (ou seja, ideias sem profundidade, vagas e muito repetidas) é o medo de atrair discordância. Muitos imaginam ter encontrado a maneira de receber a aceitação das outras pessoas, que seria defender ideias universalmente aceitas.

No entanto, como as eleições de 2014 devem ter demonstrado, as pessoas (até mesmo amigos próximos) são muito diferentes e possuem pontos de vista variados. É bem difícil encontrar uma opinião com a qual todos concordem. E, quando se encontra uma opinião desse tipo, o mais provável é que seja uma afirmação vaga, abstrata ou redundante. Às vezes, esse tipo de informação até parece fazer sentido, mas apenas porque cada pessoa a completa da maneira que achar melhor. Um exemplo é o texto dos horóscopos: quando um deles diz algo como “pessoas próximas a você podem dar conselhos preciosos”, é o próprio leitor que determina quem é essa pessoa e qual é esse conselho. E é altamente provável que o leitor vá receber algum conselho de uma pessoa próxima nesse dia, o que dá a impressão de que o horóscopo funciona.

Uma maneira simples de identificar que alguém está usando o senso comum para defender seus argumentos é observar se essa pessoa defende coisas que ninguém critica. Por exemplo, quando alguém diz que é a favor da paz, da vida e da liberdade. Ora, alguém pode ser contra esses valores? A impressão que se tem à primeira vista é a de que é impossível discordar do que a pessoa vai dizer. No entanto, as pessoas que usam esse tipo de discurso normalmente estão escondendo suas reais motivações. E essas motivações costumam envolver polêmica, ou seja, a defesa de ideias com as quais muitos não concordam.

Vamos a um caso prático: o movimento contra o aborto, nos Estados Unidos, é conhecido como “Pró-Vida”. A defesa da vida é uma posição praticamente inquestionável, usada para trazer mais credibilidade à tese que o movimento realmente quer defender: a proibição do aborto, considerado por eles um assassinato. Da mesma maneira, o movimento que se opõe ao “Pró-Vida” é chamado de “Pró-Escolha”. Naturalmente, o nome, que remete à defesa da liberdade, serve para escamotear a verdadeira motivação do movimento, que é a preservação do direito ao aborto.

Outro exemplo: no Brasil, vemos muitos políticos se apresentando como “defensores da família”. Quando se vê um discurso desse tipo, a atitude mais racional é procurar as causas ocultas sob a motivação de nobreza aparentemente inquestionável. No nosso caso, o mais recorrente é que a defesa da família se traduza em combate aos direitos dos homossexuais (como os de casar ou adotar crianças).

Uma consequência muito negativa dessa estratégia de se esconder atrás de opiniões indiscutíveis é a divisão implícita do mundo em duas partes: para muitos críticos do aborto, por exemplo, só é possível estar do lado deles ou ser um assassino de bebês inocentes (é curioso notar, no entanto, que muitos opositores do aborto são também defensores da pena de morte); da mesma maneira, ao se denominar “pró-escolha”, o movimento que defende o direito ao aborto sugere que seus críticos são inimigos da liberdade. Mas nem mesmo o mais ferrenho defensor do direito ao aborto é favorável à liberdade absoluta.


Embora a estratégia de escolher palavras indiscutíveis funcione muitas vezes, quando usada em um público-alvo pouco atento ou desinformado, não se pode basear uma discussão séria no senso comum. É ingênuo imaginar que, ao mudar algumas palavras-chave, torna-se possível fazer todas as pessoas concordarem com uma opinião. Sempre haverá discordância; e a única maneira honesta de lidar com ela é aceitá-la como algo natural, tentar entender os motivos que levam as pessoas a discordar de uma determinada opinião e apresentar argumentos sólidos para defendê-la. Fingir que se defende um valor universal é uma atitude falsa, covarde e que só funciona com pessoas despreparadas.