sábado, 17 de dezembro de 2011

Análise do tema de Redação Unifesp 2012

Confira o tema na íntegra:

http://www.vunesp.com.br/ufsp1101/CG_LPort_LEstr_Red.pdf


O tema de redação da Unifesp trouxe à tona um assunto que causou bastante polêmica no primeiro semestre de 2011: o livro “Por Uma Vida Melhor”, aprovado pelo MEC para uso em cursos de EJA (Educação de Jovens e Adultos). Segundo alguns críticos, esse livro ensinaria os alunos a cometer erros de concordância e desprezaria o uso da chamada norma culta.

A coletânea oferecida pela Unifesp foi bastante completa, dando ao candidato um volume de informações que permitia, até mesmo a quem não tivesse conhecimento prévio do tema, entender as razões da polêmica e se posicionar em relação a ela. O risco que enxergo nesse tema, na verdade, não é nem o candidato chegar à prova sem nenhuma noção da polêmica, mas o contrário: o candidato poderia ter sido influenciado pelas ideias do senso comum que foram amplamente divulgadas pela grande mídia, especialmente a rede Globo e a revista Veja, e se limitar a repetir essas ideias ao invés de ler a coletânea com atenção.

O primeiro elemento da coletânea era uma charge, publicada no Diário de Guarulhos em 18.05.2011:

LIVRO APROVADO

PELO MEC

ACEITA ERROS

DE CONCORDÂNCIA

A charge não é muito profunda, o que, paradoxalmente, a torna um ótimo exemplo do tipo de comentário mais frequente durante toda essa polêmica: “O livro aprovado pelo MEC ensina errado. Que absurdo! Onde vamos parar? #indignado”.

Por ser uma charge, e portanto um texto visual, que atrai a atenção do leitor rapidamente, é provável que muitos candidatos tenham dado a ela uma importância exagerada. Acredito que, embora representativa do pensamento de muitos, a charge não ofereceu informações ou argumentos suficientes para ser usada de forma produtiva na redação.

Logo em seguida, no entanto, foi reproduzido um texto fundamental para a compreensão da polêmica: a tal página em que aparece o exemplo “Os livro”, com destaque (meu) dado para o seguinte trecho:

Você pode estar se perguntando: ‘ Mas eu posso falar ‘os livro’?”

Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando todas as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.

A presença do texto original do livro “Por Uma Vida Melhor” na prova foi muito importante para que o candidato pudesse julgar melhor as opiniões que surgem a seguir, tanto favoráveis quanto desfavoráveis ao livro:

Sírio Possenti, professor da Unicamp, em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, em 22.05.2011, afirmou:

“O jornalismo nativo teve uma semana infeliz. Ilustres colunistas e afamados comentaristas bateram duro em um livro, com base na leitura de uma das páginas de um dos capítulos. Houve casos em que nem entrevistado nem entrevistador conheciam o teor da página, mas apenas uma nota que estava circulando (meninos, eu ouvi). Nem por isso se abstiveram de ‘analisar’.” O professor apontou três pontos fundamentais sobre o assunto:

I. “Uma questão refere-se ao conceito de regra: quem acha que gramática quer dizer gramática normativa toma o conceito de regra como lei e o de lei como ordem: deve-se falar / escrever assim ou assado; as outras formas são erradas. Mas o conceito de regra / lei, nas ciências (em linguística, no caso), tem outro sentido: refere-se à regularidade (...). ‘Os livro’ segue uma regra. E uma gramática é conjunto de regras, também descritivas.”

II. “Outro problema foi responder ‘pode’ à pergunta se se pode dizer os livro. ‘Pode’ significa possibilidade (pode chover), mas também autorização (pode comer buchada). No livro, ‘pode’ está entre possibilidade e autorização. Foi esta a interpretação que gerou as reações. Além disso, comentaristas leram ‘pode’ como ‘deve’. E disseram que o livro ensina errado, que o errado agora é certo.”

III. “A terceira passagem atacada foi a advertência de que quem diz ‘os livro’ pode ser vítima de preconceito. Achou-se que não há preconceito linguístico. Mas a celeuma mostra que há, e está vivíssimo. Uma prova foi a associação da variedade popular ao risco do fim da comunicação. Li que o português ‘correto’ é efeito da evolução (pobre Darwin!). Ouvi que a escrita (!) separa os homens dos animais!”

Para quem ainda não se cansou do assunto, aqui vão dois links de vídeos exibidos na TV aberta sobre o conteúdo do livro. Fica bem claro que a maioria das pessoas que fala não leu nem sequer a página em questão:

Alexandre Garcia falando que a língua escrita separa o homem dos animais: http://www.youtube.com/watch?v=-CpFHYsbjoc&feature=related

Carlos Monforte criticando o livro e usando a seguinte frase: “onde fica as leis de concordância?”: http://www.youtube.com/watch?v=VGEc1-2arTA&feature=related


O artigo de Sírio Possenti chama a atenção justamente para o fato de que muitos comentaristas não fizeram afirmações sobre o livro, mas sim sobre ideias gerais sobre o ensino de língua. O problema, nesse caso, não é afirmar que o ensino da língua padrão é importante (quem afirma isso não está necessariamente errado), mas sim atribuir ao livro a posição contrária. Muitos repórteres que criticaram o livro disseram algo do tipo: “é absurdo não ensinar a língua padrão!”, como se essa fosse a atitude do livro em questão. Um exemplo é o artigo de Lya Luft na revista Veja, também citado na coletânea:


Em artigo na revista Veja, em 25.05.2011, a escritora Lya Luft disse: “O livro e a ideia que o fundamenta começam a merecer críticas de entidades como a Academia Brasileira de Letras e de centenas de estudiosos. Eu o vejo como o coroamento do descaso, da omissão, da ignorância quanto à língua e de algum laivo ideológico torto, que não consigo entender bem.

Acrescenta: “Essa variedade se chama adequação, é essencial, é natural e enriquece a língua. Mas querer que a escola ignore que existe uma língua-padrão, que todos temos o direito de conhecer, é nivelar por baixo, como se o menos informado fosse incapaz. É mais uma vez discriminar quem não pôde desenvolver plenamente suas capacidades.”

Note que a autora critica o fato de se “querer que a escola ignore que existe uma língua-padrão”. Até aí, faz sentido. Mas o livro que ela supostamente está criticando em nenhum momento ignora a existência de um padrão, como deve estar claro para o candidato que leu a coletânea até o momento. Eu vi este ano um tema de redação, elaborado por uma grande rede de cursos pré-vestibulares, em que havia um claro direcionamento contrário à existência do livro “Por Uma Vida Melhor” e à discussão das variedades lingüísticas em sala de aula. Mas, no tema da Unifesp, a presença do texto original permite uma leitura mais consistente e deve levar o candidato mais atento a perceber uma discrepância entre o que o livro diz e o que alguns comentaristas dizem sobre o livro.


No dia 19.05.2011, em seu Editorial, a Folha de S.Paulo publicou: “O episódio, que faz lembrar as ferozes controvérsias gramaticais da República Velha (1889-1930), é menos relevante em si do que pelo que reitera em termos de mentalidade pedagógica. De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação ‘popular’ ou ‘democrática’, muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações. Em vez da revolução pedagógica que apregoam, o resultado tem sido a implantação despercebida da lei do menor esforço nas escolas. Estuda-se pouco e ensina-se mal. Isso – e não suscetibilidades gramaticais – é o que deveria preocupar.”

O trecho do editorial da Folha de S.P. foge um pouco do padrão ao se abster de comentar o livro, preferindo discutir uma tendência da educação moderna (“ensina-se pouco e ensina-se mal”). Seria possível o candidato tomar um caminho semelhante, discutindo mais os aspectos da educação atual e menos as especificidades do livro de Heloísa Ramos. Nesse caso, o livro “Por Uma Vida Melhor” poderia servir como uma introdução indutiva para mostrar como a sociedade vê a variação lingüística na educação.

O último excerto da coletânea é justamente um texto que fala sobre a diferença entre mostrar a existência de variantes e deixar de ensinar a variante padrão:

Por fim, veja-se a posição da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN): “O livro acata orientações dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) já em andamento há mais de uma década. Outros livros didáticos também englobam a discussão da variação linguística para ressaltar o papel e a importância da norma culta no mundo letrado. Portanto, nunca houve a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada. Ao contrário, entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma para o acesso efetivo aos bens culturais e para o pleno exercício da cidadania. Esta é a única razão que justifica a existência da disciplina de Língua Portuguesa para falantes nativos de português.” Conclui-se o texto: “é importante esclarecer que o uso de formas linguísticas de menor prestígio não é indício de ignorância ou de outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento. Aliás, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relação ao ensino de língua e à variedade linguística.”

Com base nas informações apresentadas – e em outros conhecimentos sobre o assunto discutido – elabore um texto dissertativo, em norma-padrão da língua, abordando o seguinte tema:

A questão da variação linguística no contexto da educação

Enfim, podemos ver um tema que, ao contrário da maioria dos vestibulares estaduais recentes, trata de uma questão polêmica. A Unifesp teve o cuidado de não pender para um lado ou outro da questão, mas deu informações suficientes para o candidato formar sua opinião. Acredito, no entanto, que muitos candidatos devem ter ignorado os textos (até devido à relativa extensão da coletânea) e se baseado nas ideias divulgadas pela maior parte da mídia na ocasião, o que pode ter gerado redações marcadas pelo senso comum. A proposta da Unifesp 2012 também vale, assim, como exemplo de que não se deve reproduzir cegamente tudo o que se ouve na TV, ainda que o assunto seja pertinente.

Um comentário:

  1. Muito bem estruturada a proposta. Apesar de um tem "batido", gostei muito. Mas também acredito que a pressa tenha impedido as crianças de lerem a coletãnea como deveriam.

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