terça-feira, 4 de agosto de 2015

Maturidade




- Cara, preciso te falar uma coisa meio chata... 
- Que foi?
- É verdade que você comprou um livro de colorir?
- … 
- Sério, cara? Olha, faz um tempo que eu quero falar disso. Sabe que eu sou seu amigo, né? Estou só te dando um toque.
- Hmm, tá bom...
- É que você é muito infantil, véi! Não é só o negócio do livro. Lembra uma vez que eu entrei no seu carro e tava tocando “Plunct Plact Zum”?
- Mas essa música é muito legal! Raul Seixas, pô! 
- Não é esse o ponto. É que tudo que você faz é coisa de criança. Te chamei pra ir tomar uma com a galera semana passada e você não foi, né? Por quê?
- Concurso de cosplay.
- Ou seja, você foi se vestir de super-herói no meio de um monte de nerd virgem. Sua roupa era de quê? Homem-Aranha?
- Aranha Escarlate...
- Tá vendo? Coisa de criança, cara. Você já tem quase trinta! Não dá mais pra ficar assim. O que você faz de quarta à noite, que nunca foi no campo com a gente?
- Jogo videogame, ué. Você também joga.
- É, mas eu jogo Fifa. Jogo de homem. Não é essa coisa de criança que você curte. Super Mario eu jogava quando tinha oito anos! Minecraft é jogo que o meu filho joga, cara! Você não vê que tem um problema?
- Pode ser, sei lá.
- Estou falando pro seu bem. Me promete uma coisa: no próximo fim de semana você vai agir como um adulto. Depois a gente conversa.
- Tá bom.

(…)

- E aí, cara? Beleza?
- Tranquilo, e você?
- Também. Fez o que a gente combinou? 
- Fiz. Agi como um adulto esse fim de semana todo.
- E aí? Como foi?
- Bom, no sábado eu fui ao estádio, como você sempre fala. Me vesti de jogador de futebol, paguei caro, usei um banheiro muito sujo e fiquei no meio de um monte de adultos que passaram duas horas xingando outros adultos que torciam por um time diferente. Alguns foram brigar depois do jogo, mas não deu pra eu ir, porque tinha combinado uma balada. Fui a um bar muito cheio, em que mal dava pra se mexer, ouvi músicas com letras mais adultas, como “vai no banheiro pra gente se beijar” e “alakazam, alakazam, pode vir você e a sua irmã”; paguei muito caro pra entrar e pra me embebedar. Aí, ofereci tequila pra umas meninas pra ver se deixava alguma delas alcoolizada o suficiente pra querer fazer sexo comigo. No fim não deu certo, porque eu passei mal e acabei vomitando no banheiro. Então eu fui embora dirigindo, mas, como eu não sou moleque, antes eu entrei num grupo de Whatsapp que avisa onde tem blitz da Lei Seca.

No domingo eu fui almoçar com a minha família, ficamos vendo programas adultos na TV, como Faustão e Domigo Legal. Me emocionei com as histórias de vida das pessoas que vão ao programa da Eliana e descobri que a única coisa que torna uma pessoa bem sucedida é a fé. Discutimos muitos assuntos adultos sobre a vizinhança, criticamos as pessoas que bebem demais e perdem o controle e essa juventude que não tem mais respeito pelas tradições. Ficou evidente pra todo mundo que na nossa época é que era bom, porque a gente podia fumar em elevador e fazer piada de preto e de loira à vontade.
À noite, só me restou mesmo ver no Fantástico como o PT está acabando com o país e depois compartilhar umas imagens pelo Facebook expondo toda minha indignação. Fui dormir me sentindo muito mais maduro. Obrigado pelo toque, mudou minha vida.

domingo, 26 de julho de 2015

Como elaborar uma tese para a dissertação argumentativa



Já mencionei mais de uma vez a importância de fazer um projeto de texto antes de escrever qualquer redação. No caso de uma dissertação, o primeiro passo desse projeto é elaborar a tese. Agora, vou detalhar um pouco mais esse processo de elaborar a tese para um texto dissertativo.

1. O que é a tese?

Em primeiro lugar, a tese é a opinião do autor sobre o tema. Leia a proposta e se pergunte: “o que eu acho disso?”. É provável que a resposta a que você vai chegar possa ser usada como tese no seu texto. Por exemplo, se o tema é maioridade penal e você acha que essa medida é positiva (você acredita que ela vai diminuir a violência, por exemplo), sua tese pode ser “a maioridade penal deve ser reduzida no Brasil”.
Em segundo lugar, a tese é a ideia a ser defendida durante o texto. Isso quer dizer que, em uma dissertação argumentativa, todas as ideias servem para fazer a tese parecer mais verdadeira. Imagine, por exemplo, uma redação que contenha as duas ideias a seguir:

  • a publicidade pode levar ao consumismo;
  • a publicidade infantil deve ser regulamentada.
Qual delas tema a maior probabilidade de ser a tese? Se você respondeu a segunda, muito bem. Mas por quê? Por um motivo simples: qualquer uma das duas ideias poderia ser usada como tese em um texto dissertativo-argumentativo. No entanto, eu disse antes que ambas as ideias estão presentes no mesmo texto. Nesse caso, nós devemos levar em conta que a primeira ideia serve como uma forma de provar a segunda (o fato de a publicidade levar ao consumismo é um motivo para que ela seja regulamentada). Logo, a segunda é a tese; a primeira é um argumento.

Por fim, toda tese deve ter o formato de uma oração declarativa. A tese deve ter um sintagma verbal (caso contrário, não é uma oração) e deve fazer uma afirmação ou uma negação. Veja os exemplos abaixo:

  • A natureza” - não é uma tese (não é uma oração)
  • Defender a natureza” - não é uma tese (não tem um sintagma verbal; embora tenha um verbo, ele está em uma forma nominal, o infinitivo)
  • É preciso defender a natureza?” - não é uma tese (é uma oração, mas é interrogativa, não declarativa)
  • É preciso defender a natureza” - é uma tese (finalmente!)
Resumindo até agora: se você escrever uma oração declarativa que contenha sua opinião sobre o tema e que possa ser defendida com argumentos, então você tem uma tese.

2. Existem teses certas e teses erradas?

Resposta curta: não! Resposta longa: uma ideia muito difundida entre estudantes é a de que os corretores dos grandes vestibulares brasileiros esperam uma determinada opinião das redações e, por isso, defender uma tese diferente da esperada pela banca levaria o candidato a ser penalizado. Em vestibulares sérios, isso simplesmente não é verdade. Ou seja, não há teses corretas nem erradas: qualquer opinião pode ser defendida, desde que haja no texto argumentos fortes e bem construídos para tal.

Uma exceção parcial é o ENEM: nessa prova, os corretores são orientados a levar em conta o respeito aos direitos humanos. O problema é que não fica muito claro quais direitos devem ser priorizados quando houver um conflito. Um exemplo é a eterna polêmica do aborto: deve prevalecer o direito do feto à vida ou o direito da mãe à escolha? Qual dessas opções respeita os direitos humanos?

Felizmente, o ENEM não tem o costume de colocar os alunos nesse tipo de sinuca. Na maioria dos casos, fica claro o tipo de tese que não deve ser defendida: evite sugestões muito radicais, como expulsar todos os imigrantes do país ou punir motoristas alcoolizados com a pena de morte.

3. Existem teses boas e teses ruins?

Resposta curta: sim! Resposta longa: quando você escreve uma dissertação para uma prova, mais importante do que mostrar que você tem razão em uma tese específica é mostrar que você sabe argumentar. Se você escolher uma tese muito óbvia, pertencente ao senso comum, talvez até consiga demonstrar, sem sombra de dúvida, que ela está correta (se sua tese é “a violência é ruim”, poucas pessoas irão discordar).

No entanto, defender uma tese óbvia não dá a oportunidade de mostrar toda a sua capacidade argumentativa. Portanto, uma tese boa não pode pertencer ao senso comum. Não pode ser óbvia, vaga ou uma mera reprodução da sabedoria popular. Precisa ser algo que mostre uma análise mais aprofundada do assunto, que revele um conhecimento maior que o da média sobre o tema. Por exemplo, suponha o tema “mobilidade urbana”:

Tese ruim: a mobilidade urbana é importante.

Tese melhor: a mobilidade urbana deve ser garantida por meio de investimentos em transporte público de qualidade.

A segunda tese é melhor que a primeira porque é mais específica e demonstra que o autor pensou sobre o assunto. Não é necessariamente uma tese perfeita (não existe isso), mas já permite um trabalho de argumentação melhor.

Conclusão: Uma tese é uma oração declarativa, contendo sua opinião sobre o tema e que será defendida com argumentos; qualquer opinião pode ser usada como tese, mas é importante que ela não fique presa ao senso comum.


Se você está estudando redação, comece a praticar escrevendo algumas teses. Em breve, vou detalhar mais esse assunto, mostrando quatro tipos de tese que você pode escrever.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

"Adultos infantilizados", por Contardo Calligaris



O texto abaixo é um artigo de opinião de um de meus autores preferidos, Contardo Calligaris. Notem como ele usa sua experiência pessoal para introduzir o tema e como sua tese só aparece explicitamente na conclusão do texto.
O tema do artigo é o consumismo, que eu considero um dos mais importantes para quem quer escrever boas redações na atualidade (além de, é claro, ser algo muito relevante para a vida pós-vestibular).

Adultos infantilizados (publicado originalmente na Folha de São Paulo em novembro de 2009)

A infantilização do consumidor é peça chave do espírito do capitalismo atual

DURANTE O feriado, nos cinemas, só dava "Lua Nova", de Chris Weitz, "2012", de Roland Emmerich, e "Os Fantasmas de Scrooge", de Robert Zemeckis. Claro, havia outros filmes, mas meio que perdidos na programação.
Imaginemos que você preferisse ler um romance e consultasse a lista dos mais vendidos. Você encontraria cinco títulos de Stephenie Meyer (a autora da saga de vampiros, cujo segundo volume inspira o filme "Lua Nova"), dois volumes dos "Diários do Vampiro", de L. J. Smith, e, no fim, "O Pequeno Príncipe".

Ora, assisti a "Os Fantasmas de Scrooge" (não perderia um filme de Zemeckis, o diretor de "Forrest Gump") e achei excelente; vi de óculos, em 3D, deleitando-me com a atmosfera encantada: como disse uma menina, nevava na sala de cinema. Não vi "Lua Nova", mas gosto da saga de Meyer, sobre a qual escrevi nesta coluna, assim como escrevi sobre o primeiro filme da série, "Crepúsculo". Além disso, aposto que me divertiria com a fantasia catastrófica de "2012"; Emmerich já me divertiu com "Independence Day". Enfim, tenho uma lembrança comovida de "O Pequeno Príncipe".

Então, por que me queixaria dessa preponderância de filmes e livros obviamente infantojuvenis? Não me queixo, apenas constato: nas salas de cinema ou nas livrarias, aparentemente, os adultos devem ser uma pequena minoria, com a exceção, é claro, dos que acompanham suas crianças ou as presenteiam com livros. Estou sendo irônico: é claro que os grandes consumidores de filmes e livros infantojuvenis só podem ser os adultos.
Domingo, um amigo editor me explicava, justamente, que o filé mignon atual são os "crossovers", ou seja, as obras que "atravessam", que seduzem tanto as crianças quanto os adultos. O best-seller e o blockbuster ideais são histórias supostamente para crianças e adolescentes, mas capazes de conquistar os leitores e os espectadores adultos.

Se consultarmos a lista dos livros mais vendidos de não ficção, a conclusão é a mesma. Como assim? Os ensaios não são o domínio reservado e sisudo dos adultos? Artifício: o sucesso dos livros de autoajuda forçou os jornais a separá-los dos de não ficção, mas, de fato, os mais vendidos de não ficção são os livros de autoajuda. Ora, o texto de autoajuda se relaciona com o leitor como com alguém que precisa e prefere ser guiado, orientado, ajudado a pensar, decidir e agir, ou seja, relaciona-se com o leitor como com uma criança.

Pois bem, Benjamin Barber, no seu novo livro, "Consumido - Como o Mercado Corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos" (Record), apresenta a infantilização do consumidor não como um acidente cultural momentâneo, mas como a peça chave do espírito do capitalismo contemporâneo.

Barber é convincente e divertido: chegaram os "kidadults", os "criançultos". O drama do dia não é que as crianças sejam alvo do mercado, mas que o mercado esteja transformando os adultos em crianças.

Por que o mercado prefere lidar com "criançultos"? E o que nos predispõe a sermos infantilizados? Uma breve hipótese. Houve, sobretudo a partir da segunda metade do século 20, uma explosão de um tipo especial de amor dos pais pelos filhos, um amor feito de esperanças e expectativas monstruosas (as crianças serão o que quisemos e não conseguimos ser, nada lhes faltará). Esse tipo de amor parental cria consumidores ideais: por exemplo, indivíduos com pouquíssima tolerância à frustração (e alergia à própria ideia de que algo seja difícil ou, pior, impossível) e com uma imperiosa necessidade de satisfação imediata (e alergia a tudo o que posterga: preparação, estudo, reflexão, complexidade, poupança).

Alguém dirá: e daí, qual é o problema? Exemplo. João quer ser rapper na África do Sul e gasta, impulsivamente, o décimo terceiro da mãe na roupa certa para se parecer com seus ídolos. Para ser rapper na África do Sul, talvez fosse mais urgente que ele estudasse inglês seriamente. Mas essa observação poderia entristecer João. Melhor deixá-lo sonhar e confundir sua mascarada com o começo da realização de seu desejo; afinal, ele é feliz assim, não é? Pois é, suposição errada: quem cresce sem nunca se deparar com o impossível ou mesmo com o difícil, acaba, mais cedo mais tarde, vivendo no desespero. Por quê? Simples (como um filme para crianças): ele só consegue atribuir seus fracassos ao que lhe parece ser sua própria impotência.

Contardo Calligaris

quarta-feira, 25 de março de 2015

Falácias: Apelo à Ignorância e Inversão do Ônus da Prova




Na imagem acima, o personagem do segundo quadro está cometendo uma falácia de Apelo à Ignorância. A sua reação revoltada à fala do apresentador dá a entender que ele não acredita que a Tecpix seja a câmera mais vendida do Brasil. O problema é o motivo que ele parece apresentar para isso: o fato de que ele não conhece ninguém que tenha uma Tecpix. Podemos traduzir o pensamento dele, que é o pensamento de muitas pessoas, da seguinte maneira:

Eu não conheço A
Logo, A não existe

Não é difícil perceber o quanto isso é arrogante e falso. Se alguém não conhece um fato, isso não pode ser usado como prova de que o fato não existe. No caso acima, por exemplo, pode haver muitas explicações para o personagem não conhecer nenhum dono de câmeras Tecpix:

  1. Os amigos dele são de uma classe social mais alta, que não compra aparelhos populares;
  2. Os amigos dele não acharam necessário contar sobre as câmeras Tecpix que têm em casa;
  3. Os amigos dele se arrependem de ter comprado as câmeras e evitam falar sobre o assunto, preferindo discutir a importância do beijo gay para o futuro do país.
Conclusão simples: se você não conhece algo, não quer dizer que esse algo não existe!
Há outra face dessa falácia. Da mesma maneira que desconhecer algo não prova que esse algo não existe, também não é prova suficiente de que esse algo existe. Imagine o seguinte diálogo:

— Você acredita em extraterrestres?
— Não; tenho total certeza de que ETs não existem. Afinal, eu nunca vi nenhum.
— Arrá! Você cometeu uma falácia! Você não pode dizer que ETs não existem só porque você nunca viu nenhum. Logo, eles existem!

Quem está errado nessa conversa? Ambos. Não se pode provar que ETs não existem apenas com base no fato de que nenhum foi visto. Mas também não se pode dizer que, já que a inexistência é impossível de provar, a existência está automaticamente provada.
Dizer que uma coisa existe até prova em contrário é uma falácia-irmã do Apelo à Autoridade, que se chama Inversão do Ônus da Prova. Sua estrutura:

Não há provas de que A não existe
Logo, A existe

O motivo para isso ser uma falácia é simples: quem faz uma afirmação tem a necessidade de provar essa afirmação. Quem duvida da afirmação não precisa provar a falsidade dela (até porque, em muitos assuntos, provar a inexistência de algo é impossível, especialmente se esse algo for imaterial e indetectável). Um exemplo clássico é o do dragão de Carl Sagan, citado em seu livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios” (coloquei no final do texto o link para um vídeo que explica essa alegoria).

Você discorda? Acha que é perfeitamente válido dizer que uma coisa existe e exigir que as outras pessoas provem o contrário? Nesse caso, acho que você concorda coma afirmação feita na imagem abaixo:



Viu a situação? Se você afirma que, digamos, Papai Noel existe, e desafia quem pensa de maneira oposta a provar que ele não existe, você acaba sendo obrigado a aceitar muitas afirmações fantasiosas, porque você também não vai conseguir provar que elas são falsas. O melhor seria você tentar mostrar que o Papai Noel existe, por meio de evidências racionais que sejam compreensíveis para todas as pessoas.

Para finalizar, dois exemplos dessa falácia que aparecem em redações:

“Nunca se ouviu falar de um país em que o comunismo tenha dado certo.”

Pode até ser, mas isso não prova que o comunismo seja automaticamente falho, nem elimina a possibilidade de ele dar certo no futuro.

“As pessoas argumentam que as armas de fogo defendem suas famílias. Mas quantas vezes se ouviu falar de alguém que evitou uma assalto graças a uma arma de fogo?”

Da mesma forma que aconteceu com a Tecpix, há vários motivos para não haver notícias sobre assaltos evitados por armas de fogo: uma explicação é o fato de que um “quase-assalto” não é notícia, enquanto um acidente envolvendo uma arma de fogo é notícia. Dessa maneira, é natural que as pessoas ouçam falar muito pouco de situações em que armas de fogo frustraram assaltos.

Também recomendo que vocês vejam os links abaixo, com mais detalhes e exemplos sobre essas falácias:


O Encoxador Noturno Invisível: https://www.youtube.com/watch?v=Xd8zOpUcYxk
O Dragão Invisível de Carl Sagan: https://www.youtube.com/watch?v=107NOt8aHTY
A proposta do Design Inteligente:  http://www.cienciablogada.com.br/2011/08/descartando-complexidade-irredutivel-do.html

É isso por enquanto. Se você quiser ver mais falácias, é só entrar na seção de comentários de qualquer site grande (Yahoo!, UOL, Terra...) ou procurar na sua timeline do Facebook. Se quiser mais explicações sobre falácias, pode começar pelos links acima e também esperar as que eu vou postar aqui em breve (espero).

Falácias

Uma das maiores revoluções trazidas pela internet foi a democratização da expressão: nunca antes foi tão fácil a uma pessoa normal (que não esteja ligada aos meios de comunicação) expor suas ideias para um público potencial de milhões. Com isso, cada vez mais vemos pessoas argumentando e defendendo seus pontos de vista, sem a necessidade de intermediários.

No entanto, isso também causa um problema: muitas pessoas, por desconhecimento ou desonestidade intelectual, acabam incorrendo em falácias, que são raciocínios aparentemente corretos, mas que contêm falhas lógicas e que, portanto, não podem ser levados a sério. E um agravante é o que eu chamo de “cultura do compartilhamento”: muitas pessoas compartilham textos, vídeos ou imagens sem ter entendido seu significado. Com isso, ideias falaciosas se espalham e acabam ganhando o status de verdades.

Vou usar este espaço para falar de algumas das falácias mais conhecidas, usadas e repisadas. É uma tentativa ingênua de fazer com que as pessoas usem menos esse tipo de recurso e que não sejam enganadas quando alguém tentar usá-lo.


As duas primeiras, que vêm logo em seguida, são “Apelo à Ignorância” e “Inversão do Ônus da Prova”.

domingo, 15 de março de 2015

Direita e Esquerda


(http://andrefreitasillustrations.blogspot.com.br/2014/10/esquerda-caviar-x-coxinhas-de-direita.html)

Diálogo imaginário ocorrido durante uma manifestação.

- E você?
- O que tem eu?
- É de direita ou de esquerda?
- Hmmm... não sei. Nunca pensei em me definir nesses termos.
- Cara, você tem que tomar uma posição! Ser politizado, fazer sua parte nesse momento de crise! É agora ou nunca. A voz do povo tem que ser ouvida! #saidecimadomuro.
- Tá, pode ser... mas como eu decido?
- Vou fazer umas perguntas, você responde e a gente descobre, ok?
- OK.
- O que você acha da corrupção?
- Acho ruim, claro. Acho que os corruptos tem que ser punidos.
- Viu que fácil? Você é de direita.
- Mas também acho que é ingênuo concentrar as acusações sobre a corrupção em um partido ou indivíduo, e esquecer de que as doações de grandes empresas para campanhas políticas, de todos os partidos, são o que realmente alimenta a corrupção. Também acho estranho criticar as atitudes das autoridades e continuar cometendo pequenas corrupções diárias, como falsificar carteira de identidade ou subornar guardas de trânsito.
- Então você é claramente de esquerda. Aposto que também é contra mandar os corruptos pra cadeira elétrica, como eles merecem.
- Eu acho que a pena de morte é ruim. É uma maneira pouco eficaz de combater a criminalidade, porque os criminosos não imaginam que vão ser presos e, portanto, não acham que serão punidos com a pena de morte. Além disso, a pena de morte já é aplicada no Brasil, extra-oficialmente, com as polícias que matam cerca de 2100 pessoas por ano. E isso não está funcionando.
- Viu, eu não disse? Você é um petralha amiguinho de bandido, que acha que tem que deixar marginal impune.
- Não, na verdade eu acho que a impunidade é um problema. Acredito até que os indivíduos têm bastante responsabilidade pelos seus atos e deveriam responder por eles, com penas alternativas, que não necessariamente incluem colocar os infratores em prisões. Acho que eles deveriam pagar multas e trabalhar para pagar sua dívida com a sociedade. E não dizer, simplesmente, que são vítimas do sistema e não têm culpa por suas ações. Existe gente desonesta em todo lugar, inclusive entre os pobres.
- Hmmm... nesse caso, acho que você é um coxinha revoltado. Deve estar torcendo pela volta dos militares, não é?
- De modo algum. Acho que a intervenção militar seria um gigantesco passo atrás para o Brasil. A democracia tem problemas, é verdade, mas é o sistema que mais possibilita a melhoria contínua. Com a ditadura, os desmandos ficam ainda mais ocultos. As pessoas que estão se manifestando pela volta dos militares só podem fazer isso porque não vivem em uma ditadura.
- Essa visão é claramente de esquerda. Você só pode ser um maconheiro do IFCH.
- Não, nunca fumei maconha. Não gosto de drogas.
- Ah, então você é um reacionário que quer proibir as drogas e endurecer a repressão?
- Não... acho que as drogas têm que ser legalizadas, mas com restrições para diminuir ao máximo os danos, assim como ocorre com o álcool e o tabaco. Não é porque eu não gosto de alguma coisa que todo mundo precisa me seguir. As pessoas devem fazer suas próprias escolhas.
- Então, todo mundo pode fazer o que quiser? Isso é coisa de revolucionário anarquista.
- Não, as pessoas têm que arcar com as consequências do que fazem. Então, o governo é necessário para promover um mínimo de justiça nas relações sociais. Por exemplo, é preciso que o governo tenha o monopólio da força, ou as pessoas irão usar a violência para resolver seus problemas e isso não tem como acabar bem.
- Você não confia nas pessoas? Que opinião mais fascista. Já, já, vai me dizer que todo mundo tem que entregar a vida nas mãos de Deus...
- Na verdade, eu não acredito que exista nenhum Deus. Minha opinião é a de que todas as religiões são criações humanas e só continam existindo porque se aproveitam da carência emocional dos fiéis, que querem acreditar em uma existência mais recompensadora após a morte. Acho muito difícil alguém questionar racionalmente os dogmas de sua religião e continuar acreditando nela.
- Caramba! Então você é claramente um ateu esquerdista queimador de Bíblias. Deve estar torcendo pro Brasil virar uma Cuba, onde a religião é perseguida.
- Acho que quem é religioso tem o direito de continuar sendo. Só não pode querer que as ideias da sua religião sejam impostas a toda a população do país. E os governantes precisam ser bem preparados, para conseguir separar o que é uma crença religiosa do que é uma proposta racional para a melhoria do país.
- Então, você acha que o Brasil deve ser governado apenas por pessoas bem preparadas? Se fosse assim, o Lula nunca teria sido presidente. Você está se revelando um verdadeiro tucano neoliberal.
- Bom, eu acredito que não é necessariamente verdade que um político eleito por muitos votos é um bom político. E defendo que as pessoas devem ser valorizadas por seu mérito. Acho até que é perfeitamente válido duas pessoas receberem salários diferentes em uma mesma profissão, devido a diferenças de desempenho.
- Ahá! Não disse? Elitista de direita!
- Por outro lado, a medição do mérito precisa ser pensada com muito cuidado. Não se pode simplesmente assumir que toda pessoa rica mereceu sua fortuna e que toda pessoa pobre está pagando pelos seus próprios erros. Existe muita desigualdade de condições. Por exemplo, uma criança que precisou trabalhar desde os cinco anos de idade não vai ter as mesmas oportunidades educacionais que têm os filhos de pessoas da elite. É preciso tentar aumentar essas oportunidades, e não apenas julgar as pessoas que estão nas classes mais baixas.
- Isso que você falou é muito coisa de marxista barbudo...
- Então, o que você diz? Esquerda ou direita?
- Hmmm... difícil. Vou perguntar pra alguém. Ei, Zé, chega aí. Esse cara aqui, é de direita ou esquerda?
- Direita, ué.
- Como você sabe?
- Ele tá de camiseta amarela e calça azul. Logo, direita. Coxinha, reaça, elite branca, carola, neoliberal, defensor dos cidadãos de bem e da família tradicional. Simples.
- Valeu, Zé. Viu, rapaz? Agora você sabe quem você é. Não é bom sair de cima do muro e virar um cidadão politizado?
- …

sexta-feira, 13 de março de 2015

Senso comum e o medo da discordância



(http://napraxis.blogspot.com.br/2010/10/contra-o-aborto-pela-vida-pena-de-morte.html)

Um dos motivos para as pessoas apelarem para o senso comum (ou seja, ideias sem profundidade, vagas e muito repetidas) é o medo de atrair discordância. Muitos imaginam ter encontrado a maneira de receber a aceitação das outras pessoas, que seria defender ideias universalmente aceitas.

No entanto, como as eleições de 2014 devem ter demonstrado, as pessoas (até mesmo amigos próximos) são muito diferentes e possuem pontos de vista variados. É bem difícil encontrar uma opinião com a qual todos concordem. E, quando se encontra uma opinião desse tipo, o mais provável é que seja uma afirmação vaga, abstrata ou redundante. Às vezes, esse tipo de informação até parece fazer sentido, mas apenas porque cada pessoa a completa da maneira que achar melhor. Um exemplo é o texto dos horóscopos: quando um deles diz algo como “pessoas próximas a você podem dar conselhos preciosos”, é o próprio leitor que determina quem é essa pessoa e qual é esse conselho. E é altamente provável que o leitor vá receber algum conselho de uma pessoa próxima nesse dia, o que dá a impressão de que o horóscopo funciona.

Uma maneira simples de identificar que alguém está usando o senso comum para defender seus argumentos é observar se essa pessoa defende coisas que ninguém critica. Por exemplo, quando alguém diz que é a favor da paz, da vida e da liberdade. Ora, alguém pode ser contra esses valores? A impressão que se tem à primeira vista é a de que é impossível discordar do que a pessoa vai dizer. No entanto, as pessoas que usam esse tipo de discurso normalmente estão escondendo suas reais motivações. E essas motivações costumam envolver polêmica, ou seja, a defesa de ideias com as quais muitos não concordam.

Vamos a um caso prático: o movimento contra o aborto, nos Estados Unidos, é conhecido como “Pró-Vida”. A defesa da vida é uma posição praticamente inquestionável, usada para trazer mais credibilidade à tese que o movimento realmente quer defender: a proibição do aborto, considerado por eles um assassinato. Da mesma maneira, o movimento que se opõe ao “Pró-Vida” é chamado de “Pró-Escolha”. Naturalmente, o nome, que remete à defesa da liberdade, serve para escamotear a verdadeira motivação do movimento, que é a preservação do direito ao aborto.

Outro exemplo: no Brasil, vemos muitos políticos se apresentando como “defensores da família”. Quando se vê um discurso desse tipo, a atitude mais racional é procurar as causas ocultas sob a motivação de nobreza aparentemente inquestionável. No nosso caso, o mais recorrente é que a defesa da família se traduza em combate aos direitos dos homossexuais (como os de casar ou adotar crianças).

Uma consequência muito negativa dessa estratégia de se esconder atrás de opiniões indiscutíveis é a divisão implícita do mundo em duas partes: para muitos críticos do aborto, por exemplo, só é possível estar do lado deles ou ser um assassino de bebês inocentes (é curioso notar, no entanto, que muitos opositores do aborto são também defensores da pena de morte); da mesma maneira, ao se denominar “pró-escolha”, o movimento que defende o direito ao aborto sugere que seus críticos são inimigos da liberdade. Mas nem mesmo o mais ferrenho defensor do direito ao aborto é favorável à liberdade absoluta.


Embora a estratégia de escolher palavras indiscutíveis funcione muitas vezes, quando usada em um público-alvo pouco atento ou desinformado, não se pode basear uma discussão séria no senso comum. É ingênuo imaginar que, ao mudar algumas palavras-chave, torna-se possível fazer todas as pessoas concordarem com uma opinião. Sempre haverá discordância; e a única maneira honesta de lidar com ela é aceitá-la como algo natural, tentar entender os motivos que levam as pessoas a discordar de uma determinada opinião e apresentar argumentos sólidos para defendê-la. Fingir que se defende um valor universal é uma atitude falsa, covarde e que só funciona com pessoas despreparadas.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Argumentos sobre a pena de morte

Já há algum tempo, eu tenho interesse em discutir ideias do senso comum que circulam por aí sem contestação. Vou começar aproveitando um assunto polêmico, que faz parte do inconsciente coletivo quando se pensa em redação: a pena de morte. O assunto voltou à tona agora, com a execução do traficante brasileiro preso na Indonésia, e tem mobilizado muitos argumentos favoráveis e contrários. Mas o nível da discussão, infelizmente, não parece ter evoluído.

Dois argumentos muito comuns podem ser eliminados com pouquíssimo esforço:

1: o argumento de que a pena de morte economizaria dinheiro: no Kansas, em 2003, uma pesquisa concluiu que um único caso de pena de morte custava, em média, US$ 1,26 milhão, contra US$ 740 mil de um caso comum até o fim da pena. Obviamente, não temos dados equivalentes no Brasil, mas é possível imaginar que a relação seria semelhante. Além disso, o fato de o Brasil não ter nenhuma infraestrutra para a pena capital em seus presídios provavelmente levaria a gastos extras.

2: o argumento de que a pena capital diminuiria a superlotação nos presídios: em todo o mundo, cerca de 1000 pessoas são executadas por ano; o Brasil tem um déficit de 200 mil vagas em presídios – 563 mil presos, 363 mil vagas; ou seja, o impacto da pena de morte seria desprezível.

Mas o que eu quero discutir aqui é um argumento mais etéreo: o de que a pena de morte teria um efeito psicológico, inibindo os futuros criminosos. Acompanhe:

Se a pena de morte for aprovada no Brasil, o mais provável é que use um sistema semelhante ao dos Estados Unidos, que é culturalmente mais próximo de nós do que a Indonésia, a China ou a Arábia Saudita. Portanto, vou usar os números dos nossos vizinhos da América do Norte como base.

Os Estados Unidos têm cerca de 320 milhões de habitantes; nos últimos quatro anos para os quais há dados oficiais (2010 a 2013), foram executados 162 condenados nos 36 estados que aplicam a pena capital (média de 40,5 por ano).

Alguém pode dizer: “Pelo menos, eles servem de exemplo para os que ainda não cometeram crimes; se a pessoa sabe que vai morrer, ela desiste do crime e começa a agir como um cidadão de bem”.

Isso até poderia ser verdade... mas o que ocorre é que é muito mais provável alguém que cometeu um crime morrer no Brasil do que nos Estados Unidos! No mesmo período em que a pena capital estadunidense matou 162 condenados, a polícia brasileira, sem julgamento, foi responsável pela morte de 8.378 pessoas!

Para não ser injusto, vou computar aqui também as pessoas mortas pela polícia nos Estados Unidos nesses 4 anos: 1.531. Fazendo todas as contas, temos o seguinte:

Pessoas mortas pelo Estado brasileiro (polícia + pena de morte): 2.094 por ano
Pessoas mortas pelo Estado estadunidense (polícia + pena de morte): 423 por ano

Levando em conta a população dos dois países, a probabilidade de uma pessoa morrer em consequência de um conflito com a lei é quase OITO VEZES maior no Brasil do que nos 
Estados Unidos. Logo, chegamos a duas conclusões simples:

1 – o Brasil já aplica a pena de morte, extraoficialmente;

2- se o medo de morrer por ter cometido um crime fosse um desmotivador eficiente, era de se esperar que o número de crimes violentos no Brasil fosse menor (não é o que ocorre: o Brasil tem uma taxa de 21 assassinatos por 100 mil habitantes, contra 4,2 dos Estados Unidos).

É compreensível que, em momentos de desespero, as pessoas sejam seduzidas por argumentos falaciosos e fáceis. No entanto, adotar esse discurso apenas dificulta a compreensão e a solução dos problemas. Por isso, mesmo quando você estiver incomodado com uma situação e até com raiva por não ver uma solução próxima, não saia adotando a primeira proposta sem sentido que aparecer no Facebook. Tente analisar os detalhes e ver se o que foi sugerido realmente faz sentido.

Pretendo comentar mais argumentos do senso comum no futuro. Se alguém tiver sugestões, pode mandar por aqui. Até breve.

Fontes:

Custo de execuções no Kansas:
ttp://www.deathpenaltyinfo.org/node/1080

Mortes em confronto com a polícia no Brasil:
Aplicações da pena de morte nos Estados Unidos: http://www.amnestyusa.org/pdfs/DeathPenaltyFactsMay2012.pdf

Déficit de vagas em presídios no Brasil
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID364AC56ADE924046B46C6B9CC447B586PTBRNN.htm

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Redação na Unicamp 2015: Gênero 2 - Carta-convite

Em 2015, temos mais uma vez uma carta na prova da Unicamp. Agora, é uma carta-convite que também tem características de carta argumentativa.

Veja a proposta abaixo ou na página da Comvest: http://www.comvest.unicamp.br/vest2015/F2/provas/redport.pdf

Em busca de soluções para os inúmeros incidentes de violência ocorridos na escola em que estudam, um grupo de alunos, inspirados pela matéria “Conversar para resolver conflitos”, resolveu fazer uma primeira reunião para discutir o assunto. Você ficou responsável pela elaboração da carta-convite dessa reunião, a ser endereçada pelo grupo à comunidade escolar – alunos, professores, pais, gestores e funcionários.
A carta deverá convencer os membros da comunidade escolar a participarem da reunião, justificando a importância desse espaço para a discussão de ações concretas de enfrentamento do problema da violência na escola. Utilize as informações da matéria abaixo para construir seus argumentos e mostrar possibilidades de solução.
Lembre-se de que o grupo deverá assinar a carta e também informar o dia, o horário e o local da reunião.

Conversar para resolver conflitos.
Quando a escuta e o diálogo são as regras, surgem soluções pacíficas para as brigas.

Alunos que brigam com colegas, professores que desrespeitam funcionários, pais que ofendem os diretores. Casos de violência na escola não faltam. A pesquisa O Que Pensam os Jovens deBaixa Renda sobre a Escola, realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) sob encomenda da Fundação Victor Civita (FVC), ambos de São Paulo, revelou que 11% dos estudantes se envolveram em conflitos com seus pares nos últimos seis meses e pouco mais de 8% com professores, coordenadores e diretores. Poucas escolas refletem sobre essas situações e elaboram estratégias para construir uma cultura da paz. A maioria aplica punições que, em vez de acabarem com o enfrentamento, estimulam esse tipo de atitude e tiram dos jovens a autonomia para resolver problemas.
Segundo Telma Vinha, professora de Psicologia Educacional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colunista da revista NOVA ESCOLA, implementar um projeto institucional de mediação de conflitos é fundamental para implantar espaços de diálogo sobre a qualidade das relações e os problemas de convivência e propor maneiras não violentas de resolvê-los. Assim, os próprios envolvidos em uma briga podem chegar a uma solução pacífica.
Por essa razão, é importante que, ao longo do processo de implantação, alunos, professores,
gestores e funcionários sejam capacitados para atuar como mediadores. Esses, por sua vez, precisam ter algumas habilidades como saber se colocar no lugar do outro, manter a imparcialidade, ter cuidado com as palavras e se dispor a escutar.
O projeto inclui a realização de um levantamento sobre a natureza dos conflitos e um trabalho
preventivo para evitar a agressão como resposta para essas situações. Além disso, ao sensibilizar os professores e funcionários, é possível identificar as violências sofridas pelos diferentes segmentos e atuar para acabar com elas.

Pessoas capacitadas atuam em encontros individuais e coletivos

Há duas formas principais de a mediação acontecer, segundo explica Lívia Maria Silva Licciardi,
doutoranda em Psicologia Educacional, Desenvolvimento Humano e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A primeira é quando há duas partes envolvidas. Nesse caso, ambos os lados se apresentam ou são chamados para conversar com os mediadores - normalmente eles atuam em dupla para que a imparcialidade no encaminhamento do caso seja garantida - em uma sala reservada para esse fim. Eles ouvem as diversas versões, dirigem a conversa para tentar fazer com que todos entendam os sentimentos colocados em jogo e ajudam na resolução do episódio, deixando que os envolvidos proponham caminhos para a decisão final.
A segunda forma é utilizada quando acontece um problema coletivo - um aluno é excluído pela turma, por exemplo. Diante disso, o ideal é organizar mediações coletivas, como uma assembleia. Nelas, um gestor ou um professor pauta o encontro e conduz a discussão, sem expor a vítima nem os agressores. "O objetivo é fazer com que todos falem, escutem e proponham saídas para o impasse. Assim, a solução deixa de ser punitiva e passa a ser formativa, levando à corresponsabilização pelos resultados", diz Ana Lucia Catão, mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
Ela ressalta que o debate é enriquecido quando se usam outros recursos: filmes, peças de teatro e músicas ajudam na contextualização e compreensão do problema.
No Colégio Estadual Federal (CEF) 602, no Recanto das Emas, subdistrito de Brasília, o Projeto Estudar em Paz, realizado desde 2011 em parceria com o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da Universidade de Brasília (NEP/UnB), tem 16 alunos mediadores formados e outros 30 sendo capacitados.
A instituição conta ainda com 28 professores habilitados e desde o começo deste ano o projeto faz parte da formação continuada. "Os casos de violência diminuíram. Recebo menos alunos na minha sala e as depredações do patrimônio praticamente deixaram de existir. Ao virarem protagonistas das decisões, os estudantes passam a se responsabilizar por suas atitudes", conta Silvani dos Santos, diretora. (...)
"Essas propostas trazem um retorno muito grande para as instituições, que conseguem resultados satisfatórios. É preciso, porém, planejá-las criteriosamente", afirma Suzana Menin, professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

(Adaptado de Karina Padial, Conversar para resolver. Gestão Escolar. São Paulo, no
. 27, ago/set 2013. http://gestaoescolar.abril.com.br/formacao/conversar-resolver-conflitos-brigas-dialogo-762845.shtml?page=1. Acessado em 02/10/2014.)

Essa proposta é uma das mais claras dos últimos anos. O propósito da carta-convite é explícito, assim como algumas características que costumam causar dúvidas (por exemplo, a necessidade de assinatura da carta). Mesmo assim, vamos analisar cada elemento da proposta:

1. O propósito:

O propósito principal da carta é convidar membros da comunidade escolar para uma reunião. Mais especificamente, podemos dividir esse propósito em quatro partes:

  1. convidar os membros da comunidade escolar a participarem de uma reunião;
  2. utilizar informações da matéria apresentada para convencer a comunidade escolar a atender ao convite;
  3. Mostrar possibilidades de solução para o problema;
  4. informar o dia, o horário e o local da reunião.

Embora pareçam muitas obrigações, elas fazem bastante sentido para a proposta e estão apresentadas de forma explícita. Acredito, portanto, que a maioria dos candidatos tenha conseguido cumprir essa parte da tarefa.
A maior dificuldade, provavelmente, envolveu as partes 2 e 3 do propósito. Ainda assim, não se trata de uma grande barreira, já que a matéria oferece dados mais que suficientes para argumentar sobre a necessidade de discutir o problema da violência. Por exemplo, alguns trechos que poderiam ser aproveitados:

Segundo Telma Vinha (…), implementar um projeto institucional de mediação de conflitos é fundamental para implantar espaços de diálogo sobre a qualidade das relações e os problemas de convivência e propor maneiras não violentas de resolvê-los.

(…) é importante que, ao longo do processo de implantação, alunos, professores, gestores e funcionários sejam capacitados para atuar como mediadores.

(…) o ideal é organizar mediações coletivas, como uma assembleia. Nelas, um gestor ou um professor pauta o encontro e conduz a discussão, sem expor a vítima nem os agressores.

Ao virarem protagonistas das decisões, os estudantes passam a se responsabilizar por suas atitudes.

A leitura atenta do texto de apoio deixa claro que o diálogo é o melhor caminho: a proposta de solução para o problema deveria incluir, de alguma maneira, a existência de encontros regulares em que a violência seja discutida abertamente por todos os envolvidos (alunos, professores e funcionários, principalmente) e os argumentos deveriam se basear nesse princípio. A própria ideia dos estudantes de convidar a comunidade escolar para uma reunião em que o problema será debatido é um argumento favorável à necessidade do diálogo.
Quanto ao convite propriamente dito e às informações, acredito que deveriam aparecer da maneira mais explícita possível. Por exemplo: “portanto, convidamos toda a comunidade escolar (pais, alunos, professores, gestores e funcionários) para a reunião que ocorrerá no auditório da escola, no dia 9 de fevereiro de 2015, a partir das 19h”. A presença das palavras usadas pela própria banca elaboradora ajuda a mostrar compreensão da proposta e facilita o trabalho do avaliador, quando ele for procurar elementos para se certificar de que as tarefas foram todas cumpridas.


2. O locutor:

A banca a pediu claramente que o candidato se colocasse como representante de um grupo de alunos interessados em promover debates sobre a violência na escola. Como as características do aluno que está escrevendo o texto não são mencionadas (e, ao que tudo indica, não são relevantes), o texto deveria ser escrito na 1a pessoa do plural (“nós, estudantes da escola tal...”).

A proposta não deixa claro se os estudantes fazem parte de uma série específica ou não. Pela leitura do texto motivador, e considerando a abrangência do problema da violência nas escolas, acredito que o mais lógico seria escrever a carta em nome dos alunos da escola como um todo, mas não creio que a Unicamp irá penalizar textos em que os locutores pertençam todos a uma mesma sala ou a outro grupo específico (como o grêmio estudantil, por exemplo).

Lembre-se de que foi pedido, explicitamente, que o grupo assinasse a carta-convite. Acredito que o modo ideal de cumprir essa tarefa seria simplesmente escrever, ao final do texto, algo como

“Atenciosamente,
Alunos da Escola Estadual Fulano de Tal”.
3. O interlocutor:

A carta deveria ser dirigida à comunidade escolar. Imagino que a banca examinadora aceitará essa denominação genérica, mas seria mais seguro discriminar os participantes (pais, alunos, professores, gestores e funcionários). Como estamos falando de um grupo muito heterogêneo de interlocutores, a Unicamp provavelmente não espera que os textos desenvolvam a imagem dessas pessoas. A única característica que eu vejo como interessante é a que todos têm em comum: a participação na vida escolar (que inclui, presumivelmente, o interesse em diminuir o número de casos de violência).

Como se trata de uma carta, a menção ao interlocutor deve estar explícita, logo no início (“Aos pais, alunos, professores, gestores e funcionários que formam a comunidade do Colégio Tal”) e deve ser explorada durante o texto. Um problema muito frequente em cartas cobradas em vestibulares é a ausência de interlocução. Para melhorar sua pontuação, o candidato deve ter feito referências aos interlocutores durante todo o texto, usando expressões como “vocês, que se importam com a boa convivência nesta escola, precisam colaborar para discutirmos abertamente o problema da violência em nosso colégio”.

4. Meio e estrutura:

Ao contrário de anos anteriores, em que as cartas tinham características híbridas que podem ter causado dúvidas, este ano a Unicamp pediu uma carta mais tradicional: provavelmente, espera-se a estrutura com data, local e destinatários no alto da página e depedida e assinatura no final. Não há motivos para pensarmos que outra estrutura seria mais valorizada, embora a Unicamp provavelmente aceite variações do modelo clássico (por exemplo, ausência de data e local).

Uma forma de garantir o cumprimento da tarefa é usar, sempre que o gênero permitir, o próprio nome do gênero. Neste caso, seria possível usar uma expressão como “estamos enviando esta carta-convite porque queremos...”.

5. A linguagem:

Sobre a linguagem, espera-se que o candidato escreva um texto formal e que use interlocução, de modo a caracterizar a carta. A ausência de interlocução será, provavelmente, uma falha muito mais grave do que a ausência de aspectos formais, como o cabeçalho.

É isso. A carta-convite, embora não seja um gênero tão previsível, não deve ter causado muitas dificuldades para os alunos bem preparados. Além disso, a proposta deste ano estava mais claramente formulada, o que deve ter facilitado o trabalho de quem a leu com atenção. Se ainda houver dúvidas, podem perguntar por aqui e vou responder na medida do possível (as férias estão acabando...).


Até breve.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A Redação na Unicamp 2015: Gênero 1 - Síntese

Neste e no próximo post, vou comentar as propostas do vestibular Unicamp 2015. Não é nada oficial, mas vou tentar ajudar a tirar aquelas dúvidas que ficam depois da prova. Qualquer coisa, pode me mandar perguntas nos comentários e eu tento, na medida do possível, responder a todas.

O primeiro gênero pedido na prova da Unicamp 2015 foi uma síntese. Fiquei meio triste, porque a proposta me pareceu muito semelhante à do resumo, de 2013. Porém, houve algumas mudanças fundamentais, que tornaram o gênero mais factível e, espero eu, devem ter tornado mais simples a tarefa de corrigir adequadamente os textos.

Para quem estiver pensando em brigar com seus professores, que gastaram três aulas para falar sobre artigo de opinião e não dedicaram nenhuma à síntese, vale o consolo de sempre: a Unicamp parece estar dedicada a colocar na prova, todos os anos, um gênero de nome inesperado, que dificilmente se trabalha em sala de aula. Porém, isso não significa um aumento de dificuldade: lendo a proposta com atenção, é possível entender o que a Unicamp espera do gênero nessa situação específica.

Veja a transcrição da proposta abaixo ou, no formato original, na página da Comvest: http://www.comvest.unicamp.br/vest2015/F2/provas/redport.pdf

Você integra um grupo de estudos formado por estudantes universitários. Periodicamente, cada membro apresenta resultados de leituras realizadas sobre temas diversos. Você ficou responsável por elaborar uma síntese sobre o tema humanização no atendimento à saúde, que deverá ser escrita em registro formal. As fontes para escrever a síntese são um trecho de um artigo científico (excerto A) e um trecho de um ensaio (excerto B). Seu texto deverá contemplar:

            a) o conceito de humanização no atendimento à saúde;
            b) o ponto de vista de cada texto sobre o conceito, assim como as principais         informações que sustentam esses pontos de vista;
            c) as relações possíveis entre os dois pontos de vista.

Excerto A

A humanização é vista como a capacidade de oferecer atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos com o bom relacionamento.
O Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) destaca a importância da conjugação do binômio "tecnologia" e "fator humano e de relacionamento". Há um diagnóstico sobre o divórcio entre dispor de alta tecnologia e nem sempre dispor da delicadeza do cuidado, o que desumaniza a assistência.
Por outro lado, reconhece-se que não ter recursos tecnológicos, quando estes são necessários, pode ser um fator de estresse e conflito entre profissionais e usuários, igualmente desumanizando o cuidado. Assim, embora se afirme que ambos os itens constituem a qualidade do sistema, o "fator humano" é considerado o mais estratégico pelo documento do PNHAH, que afirma:
(...) as tecnologias e os dispositivos organizacionais, sobretudo numa área como a da saúde, não funcionam sozinhos – sua eficácia é fortemente influenciada pela qualidade do fator humano e do relacionamento que se estabelece entre profissionais e usuários no processo de atendimento. (Ministério da Saúde, 2000).

(Adaptado de Suely F. Deslandes, Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Ciência & saúde coletiva. Vol. 9, n. 1, p. 9-10. Rio de Janeiro, 2004.)

Excerto B

A famosa Faculdade para Médicos e Cirurgiões da Escola de Medicina da Columbia University, em Nova York, formou recentemente um Programa de Medicina Narrativa que se ocupa daquilo que veio a se chamar “ética narrativa”. Ele foi organizado em resposta à percepção recrudescente do sofrimento – e até das mortes – que podia ser atribuído parcial ou totalmente à atitude dos médicos de ignorarem o que os pacientes contavam sobre suas doenças, sobre aquilo com que tinham que lidar, sobre a sensação de serem negligenciados e até mesmo abandonados. Não é que os médicos não acompanhassem seus casos, pois eles seguiam meticulosamente os prontuários de seus pacientes: ritmo cardíaco, hemogramas, temperatura e resultados dos exames especializados. Mas, para parafrasear uma das médicas comprometidas com o programa, eles simplesmente não ouviam o que os pacientes lhes contavam: as histórias dos pacientes. Na sua visão, eles eram médicos “que se atinham aos fatos”. “Uma vida”, para citar a mesma médica, “não é um registro em um prontuário”. Se um paciente está na expectativa de um grande e rápido efeito por parte de uma intervenção ou medicação e nada disso acontece, a queda ladeira abaixo tem tanto o seu lado biológico como psíquico.
“O que é, então, a medicina narrativa?”, perguntei*. “Sua responsabilidade é ouvir o que o paciente tem a dizer, e só depois decidir o que fazer a respeito. Afinal de contas, quem é o dono da vida, você ou ele?”. O programa de medicina narrativa já começou a reduzir o número de mortes causadas por incompetências narrativas na Faculdade para Médicos e Cirurgiões.

*A pergunta é feita por Jerome Bruner a Rita Charon, idealizadora do Programa de Medicina Narrativa.

(Adaptado de Jerome Bruner, Fabricando histórias: direito, literatura, vida. São Paulo: Letra e Voz, 2014, p. 115-116.)

Como de costume nas provas da Unicamp, não basta saber o nome do gênero: muito mais importante é entender as partes que o compõem e o propósito específico desse gênero na situação colocada pela banca elaboradora. Ao mesmo tempo, não há motivo para se desesperar se o gênero parece desconhecido, porque a própria prova oferece informações suficientes para o candidato produzir seu texto.

1. O propósito:

Neste ano, voltou a listinha de obrigações. Mais uma vez apareceram informações que servem apenas para a contextualização, mas que não deveriam ser incluídas na versão final do texto (isso já aconteceu no verbete, no resumo e no relatório; é mais um motivo pelo qual vale muito a pena estudar as provas anteriores)

O propósito da síntese era, basicamente, reproduzir as informações centrais de dois outros textos, apresentados pela banca. Como é bastante comum nas provas recentes da Unicamp, não se exige do candidato um conhecimento prévio do assunto. Eu costumo dizer que a redação da Unicamp é essencialmente uma prova de tradução, não de criação: o que a banca espera é que o candidato transfira as ideias de um texto escrito em um gênero para um gênero diferente.
De forma semelhante à do relatório do ano passado, as instruções do propósito estavam bem claramente definidas, nos tópicos a), b) e c), que diziam quais informações deveriam ser buscadas nos textos e incluídas na síntese:

            a) o conceito de humanização no atendimento à saúde;
            b) o ponto de vista de cada texto sobre o conceito, assim como as principais         informações que sustentam esses pontos de vista;
            c) as relações possíveis entre os dois pontos de vista.

(curiosidade: no ano passado, as informações foram todas passadas em um texto corrido; antes, até 2013, a Unicamp usava pontinhos, e não letras, para especificar as tarefas. Se você também notou isso, está na hora de procurar um hobby).

Para cumprir a parte a) da proposta, o candidato deveria encontrar em cada um dos textos a definição de humanização no atendimento à saúde. No primeiro, essa definição estabelece uma relação entre os recursos humanos e tecnológicos e está apresentada de forma bem direta, logo no primeiro parágrafo:
       
     (…) a capacidade de oferecer atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos com o bom relacionamento.

Como a tarefa do aluno era elaborar uma síntese das informações de outros textos, acredito que não haveria problemas se esse trecho fosse usado na íntegra. Afinal, ele cumpre adequadamente a tarefa de definir o conceito e seu formato não é incompatível com o gênero síntese.
Já o segundo texto não tem uma definição tão direta de humanização no atendimento à saúde, mas sua leitura atenta permite concluir que ele identifica esse conceito com a atenção dada pelo médico ao paciente.

Para cumprir a tarefa b), o candidato deveria mostrar o ponto de vista de cada texto sobre os conceitos e também os argumentos que sustentam esses pontos de vista. O primeiro texto reproduz a opinião do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), segundo a qual a humanização é mais importante que a tecnologia (é usado o argumento de que os equipamentos tecnológicos não funcionam sozinhos). Já o segundo texto menciona a Escola de Medicina da Columbia University, em Nova York, e seu Programa de Medicina Narrativa. O artigo deixa claro que é necessário respeitar a visão do paciente sobre o processo, escutando o que ele tem a dizer (argumento: a vida pertence ao paciente, não ao médico). Para reforçar a efetividade do ato de ouvir o paciente, o texto informa, no último parágrafo, que o número de mortes diminuiu após a implantação do programa.

Cumpridas as tarefas a) e b), é fácil concluir com a c): o que une os dois textos é a percepção de que o fator humano é o maior responsável pelo sucesso dos tratamentos de saúde, embora seja muitas vezes colocado em segundo plano em relação à tecnologia ou aos dados técnicos da doença.

2. O locutor:

A banca pediu ao candidato que se colocasse como membro de um grupo de estudos formado por estudantes universitários. Alguns candidatos devem, por esse motivo, ter explicitado esse fato, dizendo algo do tipo “sou membro de um grupo de estudos e estou apresentando minha síntese sobre a leitura dos textos tal e tal...”. Porém, as informações presentes na proposta dão a entender que não é essa a intenção da banca, já que o propósito do gênero não é auxiliado por esse tipo de intervenção pessoal. Minha avaliação é a de que os examinadores irão valorizar textos impessoais, como ocorreu nos gêneros verbete e resumo.

Uma característica que foi importante no resumo, de 2013, e deve ser novamente relevante aqui, é a necessidade de marcar claramente a distância entre o locutor da síntese e os autores dos textos originais. Ou seja, ao invés de se apropriar das informações dos textos, escrevendo algo como “a humanização é a capacidade de oferecer atendimento de qualidade...”, o candidato provavelmente deveria escrever algo como

De acordo com o texto “Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar”, de Suely F. Deslandes, a humanização é a capacidade de oferecer (...); no texto, a autora defende que (...)”

Com o uso desse tipo de linguagem, o leitor percebe rapidamente que está diante de um texto que dialoga com outro texto.

3. O interlocutor:

Embora isso não tenha sido explicitado, tudo indica que os interlocutores do texto são os outros membros do grupo de estudos. São pessoas que esperam receber o texto e sabem que são seus destinatários. Portanto, não parece haver necessidade de fazer referência direta a eles, tanto pelo propósito do gênero (essencialmente informativo) quanto pelo fato de que o texto será entregue diretamente aos leitores. Por isso, podemos imaginar um interlocutor universal como o mais adequado, principalmente se pensarmos na objetividade característica de um texto informativo (foi o que ocorreu também com os gêneros verbete, resumo e relatório). Para se dirigir a um interlocutor universal, basta não mencionar explicitamente quem é o leitor do texto.


4. Meio/estrutura:

A palavra síntese, embora não seja a primeira a vir à mente quando pensamos em gêneros textuais, é relativamente conhecida. Acredito que a maior parte dos alunos entendeu o que foi pedido sem muitas dificuldades. É claro que, como sempre é o caso na Unicamp, não basta conhecer o nome do gênero. Na prova de 2015, por exemplo, a síntese pedida é voltada a um grupo de estudantes e trata de um assunto de interesse do curso deles. É diferente, por exemplo, de fazer uma síntese dos dados econômicos de uma região, a ser entregue a um banco de investimentos.

Faz sentido que a síntese pedida pela Unicamp tenha um título do tipo “Síntese de textos sobre humanização no atendimento à saúde”. O motivo do título é simples: como o grupo irá receber (suponho) uma série de textos sobre temas diversos, é natural que esses temas sejam identificados, para facilitar a sua compreensão e organização. Não acredito, porém, que a Unicamp irá penalizar fortemente textos sem título. Porém, o uso da palavra “síntese” no título seria uma maneira simples de mostrar que o candidato entendeu qual é o gênero a ser produzido.

Outra possível estratégia para aumentar a clareza e caracterizar o texto como uma síntese é fazer uma topicalização da análise, separando os elementos a), b) e c) do Propósito em parágrafos diferentes. Novamente, porém, não creio que esse tipo de organização seja obrigatório.


5. A linguagem:

Tudo indica que deveria ser usada uma linguagem formal, objetiva e impessoal, devido à natureza informativa do texto e a uma orientação explícita da prova, que diz:

Você ficou responsável por elaborar uma síntese (...) que deverá ser escrita em registro formal (obs: o negrito está presente na versão original).

Enfim, essa é a minha análise do primeiro gênero. Não é nada oficial, apenas a leitura que eu fiz da proposta: por isso, não fique desesperado se você tiver feito algo diferente do que eu mencionei aqui.

Amanhã, se tudo der certo, eu posto o comentário do segundo gênero (carta-convite).

Até breve.