segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Big Brother somos nós

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Você já leu 1984, de George Orwell? Não?! Eu diria para você largar este texto e ir ler o livro agora mesmo, mas, como sei que é improvável isso acontecer, vou dar aqui um pequeno resumo: o livro conta a história de Winston, um trabalhador de classe média em uma sociedade totalmente controlada por um Partido único. O pobre Winston é encarregado de reescrever a História, falsificando documentos para garantir que a visão do Governo esteja sempre correta. Por exemplo, se o país de Winstons, a Oceânia, está em guerra com a Lestásia, todos os documentos, revistas e livros afirmam que os dois países sempre foram inimigos. Se, eventualmente, a Oceânia declara guerra à Eurásia e se alia à Lestásia, tudo é reescrito para dizer que a Lestásia sempre foi aliada da Oceânia contra os eurasianos.
Winston se incomoda com essa situação e vai aos poucos se rebelando: primeiro individualmente, ao registrar seus pensamentos em um diário; depois, começa a se envolver com Julia, uma colega de partido (o que é extremamente perigoso); ao mesmo tempo, busca tomar contato com a Resistência, uma organização secreta que supostamente combate o Partido e o Estado.
Mas este texto não foi pensado como uma resenha do livro de Orwell. Na verdade, eu me lembrei dele porque ouço muitas pessoas (em geral as que não o leram) fazerem referência a ideias e termos que aparecem em 1984. Entre esses conceitos, provavelmente o mais conhecido é o Big Brother, ou Grande Irmão, que seria o governante da Oceânia. Para todo lugar que Winston olha, vê a imagem do Grande Irmão, acompanhada dos dizeres “Big Brother is Watching You” (“O Grande Irmão está observando você”). Com sua presença opressiva, o governante lembra à população que o governo está em todos os lugares e que cada ação é registrada. Não há privacidade, não há liberdade, não há possibilidade alguma de romper as barreiras do Estado. Assustador, não?
Foi com esse livro que o termo “Big Brother” entrou na linguagem cotidiana (é, antes mesmo do reality show). As pessoas começaram a usar o termo para se referir a um sistema opressor, que controlaria todas as ações das pessoas. A cada anúncio de que o governo instalaria câmeras nas rodovias ou de que cruzaria dados do IR com os gastos bancários do contribuinte, surgiam textos (na época eles eram publicados em um maço de papéis chamado “jornal”) alertando para o perigo de a situação imaginada por Orwell se concretizar e conclamando a população a se rebelar antes que fosse tarde.
Corta para 2011, quase 2012: acabo de descobrir que a enfermeira goianiense que matou um cachorro Yorkshire há alguns dias (se não sabe do que estou falando, dê uma olhada no Google) está foragida e vem recebendo ameaças de morte. De modo algum eu aprovo a atitude dela; aliás, eu defendo que todos os que maltratam animais deveriam ser responsabilizados. Porém, acho curioso que ela não tenha sido filmada, denunciada ou condenada por um Governo opressor, por um Partido totalitário nem por um Big Brother onipresente: quem a filmou foi um vizinho dela e quem divulgou o vídeo foram milhares de cidadãos comuns, por redes sociais como Twitter e Facebook. Mais irônico ainda é que esses mesmos cidadãos chamaram a atenção do governo, que agora está processando a enfermeira. Ou seja: passamos anos temendo que o governo controlasse nossos passos e nos condenasse sem julgamento, mas quem acabou assumindo a atitude de Big Brother fomos nós mesmos.
(Breve parêntese: eu não queria discutir o caso da enfermeira aqui, mas sinto que é melhor gastar um pouco mais de espaço com isso do que abrir brecha para dizerem que eu sou advogado da moça: é absurdo, cruel e injustificável matar um animal indefeso em frente à própria filha. Mas o dano psicológico que a menina sofreu é pequeno perto do que ela deve estar passando agora, com a mãe sendo praticamente expulsa de casa, e não é nada perto do que ela sofreria se as pessoas que propuseram punições à enfermeira fossem levadas a sério. Matar assassinos de cachorros não é uma atitude mais nobre que matar cachorros.)
Quer mais exemplos de que nós nos tornamos o Big Brother? Muitos artistas, esportistas e celebridades de todo tipo reclamam da perseguição dos paparazzi. Ora, não é o governo quem contrata esses agentes para acompanhar as atitudes de cidadãos inocentes: são outros cidadãos inocentes que consomem avidamente as “notícias” sobre celebridades e mantêm o mercado aquecido para fotógrafos cuja principal função é conseguir flagrantes de pessoas conhecidas em situações constrangedoras. Comprou a revista com as fotos do Justin Bieber tomando banho de cachoeira? Ou visitou o site em que aparecem as fotos de celebridades apalpando os parceiros? Parabéns, você é uma pequena célula do Grande Irmão. Bem vindo ao clube, Brother.
Não vamos ser ingênuos, no entanto, e achar que toda exposição da vida particular tem como personagens um vilão maligno, uma vítima indefesa e milhares de voyeurs covardes. Podemos observar como exemplo o programa que leva o nome do Grande Irmão: com estreia prevista para 10 de janeiro, o BBB 12 teve 10 mil inscritos nas primeiras dez horas. Em maio de 2011, já havia 50 mil pessoas interessadas em participar. Essas pessoas estão se oferecendo, voluntariamente, para ter sua privacidade devassada em um dos programas de maior audiência do país. É verdade que há um prêmio substancial em jogo, mas, para a maioria dos participantes, o verdadeiro lucro é a própria fama (ou infâmia) que vai surgir após a participação no programa.
O mesmo sentimento que leva milhares de anônimos ao site da Globo explica a exposição que observamos no Facebook. Há alguns dias, li um comentário sobre o hábito de comer carne de cachorro na China: “devia eh explodir um país que o povo come cachorro!”. É óbvio que o autor do comentário cometeu um exagero (e que NÃO jogaria uma bomba na China se tivesse a oportunidade... acho...), mas o que chama a atenção aqui é o quanto declarações desse tipo têm se tornado cada vez mais públicas. Há alguns anos, ninguém com o mínimo de noção falaria isso para centenas de pessoas ao mesmo tempo, apenas comentaria com seus amigos próximos, de preferência em um lugar fechado, provavelmente após uns goles de cerveja. E não foi o Governo que buscou a pessoa em sua casa, nem gravou secretamente suas confissões mais íntimas. Também não acredito que as multinacionais nos obriguem a revelar opiniões preconceituosas na internet. Eu vejo as redes sociais muito mais como meios, plataformas que as pessoas usam para revelar sua personalidade. Nesse sentido, dá para dizer que o desejo de ceder a privacidade é um sentimento muito mais natural do que imaginávamos.
George Orwell previu corretamente o fim da privacidade. Mas, pelo que observo no cotidiano, especialmente depois de abrir uma conta no Facebook, ele se equivocou quanto à fonte desse fenômeno, que não é o Governo e nem mesmo as Corporações, e sim os cidadãos, o povo, os 99%, pessoas como eu e você. Somos nós que fazemos os papéis de delator, promotor, juiz, júri e, eventualmente, executor. Criticar o fim da privacidade e ao mesmo tempo tomar parte em execrações públicas é, para usar outro conceito do livro 1984, um exemplo de duplipensamento: a capacidade de acreditar em duas coisas opostas ao mesmo tempo.
(Pronto. Agora sim, vá ler 1984).

5 comentários:

  1. Belo texto Cícero. Como você também me surpreendo (ainda) com isso.

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  2. daria uma ótima redação do tema do enem este ano (o que não significa que seria uma boa nota hahah)

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  3. Acho um ótimo tema, mas não Enem, é bastante profundo. De fato, é essencial ao ser humano mostrar ao outro quem ele é, o que ele tem, o que pensa. Acredito ser uma necessidade de posicionar-se como indivíduo e, dessa forma, as redes sociais são apenas mais um meio. As pessoas parecem só realizar o que são se "os outros" a perceberem de tal forma.

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  4. Seu blog é muito bom, parabéns! Estou lendo todas as postagens, hahaha

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  5. Eu fiquei até com vontade ler o livro mas não li o seu post para não estragar a vontade de ler. Cícero, recomendo que veja o filme O Show de Truman, estrelado por Jim Carrey, relacionado ao assunto. Uma canção famosa sobre tema é Every Breath You Take do The Police

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