quarta-feira, 9 de novembro de 2011

De onde vêm as lendas de Redação, parte 3 – Perguntas comuns, respostas nem tanto


No post anterior, eu falei que as duas dicas realmente importantes para escrever bem são pratique a escrita e planeje seu texto; neste, vou comentar algumas das perguntas e dicas mais encontradas pelas ferramentas de busca da internet e mais repetidas nos corredores de escolas. Se eu me esquecer de alguma, sinta-se à vontade para postá-la nos comentários.
Em primeiro lugar, porém, três princípios gerais sobre dicas de redação:
- cada gênero ou tipo de texto tem suas próprias regras: normalmente, quando uma pessoa pergunta sobre como fazer uma redação, está pensando em dissertação. Embora esse tipo de texto seja realmente o mais pedido em provas e concursos, não podemos assumir que é o único existente. Por isso, é sempre bom explicitar sobre que gênero ou tipo de texto você está falando quando for tirar suas dúvidas. O que funciona em uma carta argumentativa pode ser motivo para anular uma dissertação, por exemplo.
- cada prova ou vestibular tem seus critérios de correção: é bastante comum que, quando questionadas sobre a qualidade de um texto, as pessoas julguem em primeiro lugar a correção gramatical. Porém, muitos vestibulares dão uma importância elevada a outras características da redação, como a profundidade das ideias, o cumprimento da tarefa pedida e o uso da coletânea. Isso não significa que você deve descuidar da gramática, mas que há outros elementos, às vezes mais importantes, que precisam ser trabalhados. Saiba também que os vestibulares e concursos sérios, em sua imensa maioria, dão pouca importância a detalhes como colocar o título centralizado ou pular ou não linhas após um cabeçalho.
- as regras seguidas por provas sérias têm sua razão de ser: existem motivos lógicos para, por exemplo, não usar a expressão “venho por meio desta” no início de uma carta argumentativa ou evitar a argumentação pessoal em uma dissertação. Se alguém disser a você que algum recurso deve (ou não) ser usado em redações, sinta-se livre para pedir à pessoa para explicar os motivos. Se ela disser apenas ‘ouvi falar’, desconfie. Prefira sempre seguir as opiniões de quem sabe argumentar sobre as regras que defende.
A partir de agora, e com base nos princípios acima, vamos analisar algumas das dicas e perguntas mais recorrentes:
1 – “Tem que pôr título?”
O título é válido para alguns gêneros de texto e não para outros. Uma notícia, por exemplo, deve ter título, enquanto uma carta não deve. Mas, na maioria dos casos, a dúvida se dá em relação a dissertações. Nesse caso, vale a regra sobre os critérios de correção de cada prova ou vestibular. O ENEM, por exemplo, não exige título, ao contrário do que muitos dizem. O mesmo vale para a Fuvest e a Unesp. Alguns temas dentro dessas provas, no entanto, já exigiram o título. Por isso, é muito importante ler com atenção as instruções da prova que você está fazendo no momento. Não tente escrever a redação antes de sair de casa.
Se o título não é obrigatório, isso quer dizer que é melhor não colocá-lo, para não correr risco de ser incoerente? A verdade é que essa lógica (não escrever é melhor que escrever mal) vale para cada linha da redação. Dessa forma, se você segui-la à risca, vai acabar com uma redação em branco. O título, embora não obrigatório, pode ajudar o texto e dar uma impressão de organização e unidade, especialmente se você seguir a regra de planejar seu texto e deixar para decidir o título apenas depois de escrever o texto inteiro, lê-lo e verificar qual título seria mais coerente com ele. Também sugiro que, durante sua prática de redação, você não deixe de colocar título em nenhum texto dissertativo, para treinar esse elemento.
2 – “É verdade que não se pode falar mal do governo em redações de Universidades públicas, já que o governo é responsável pela correção?”
Essa lenda não faz sentido algum. Em primeiro lugar, as redações não são corrigidas pelo governo e sim por profissionais contratados pelas universidades ou instituições que organizam as provas. Portanto, se houver uma crítica válida ao governo a ser feita, não faz sentido deixar de fazê-la por medo de represálias. Ao mesmo tempo, lembre-se de que falar mal do governo não é sinônimo de maturidade nem de criticidade. O mais importante é que as críticas, se necessárias, sejam pertinentes e, sempre que possível, sustentadas por fatos e argumentos.
3 – “Começar um texto dissertativo com ‘atualmente’ ou sua conclusão com ‘portanto’ tira pontos?”
O que ocorreu aqui foi uma inversão das fórmulas: como muitas pessoas foram, durante anos, orientadas a usar esses termos em seus textos, eles se tornaram muito comuns. E como muitos usavam essas e outras estruturas formulaicas sem pensar sobre as especificidades de cada tema, gênero ou tipo de texto, os resultados normalmente eram ruins. Então, dada a dificuldade de analisar o verdadeiro conteúdo das redações, tornou-se um padrão dizer que o uso de termos muito ‘batidos’ é a causa da baixa qualidade dos textos. Em outras palavras: se a maioria das pessoas escreve ‘atualmente’ no início do texto e tem uma nota ruim, concluo que escrever ‘atualmente’ é algo penalizado.
A verdade é que sugerir a abolição, nas redações, de palavras perfeitamente válidas da língua portuguesa é a estratégia usada por pessoas que não sabem muito bem do que estão falando. Um texto pode ser excelente mesmo se começar com a palavra ‘atualmente’, em especial se o uso dessa palavra foi escolhido pelo autor porque ele queria falar sobre um fato da atualidade. Além disso, é óbvio (ou deve ser, se pensarmos um pouco) que a escolha da primeira palavra do texto não é o que vai determinar a sua nota final.
Se suas ideias são boas e você planejou bem o seu texto dissertativo, não é começá-lo com o termo ‘atualmente’ que vai diminuir sua nota. Mas, se suas ideias não foram bem ponderadas e amadurecidas, uma introdução escrita pelo Machado de Assis também não vai salvar sua nota.
A dúvida sobre as palavras ‘atualmente’ e ‘portanto’ é específica de dissertações. No entanto, vários gêneros textuais seguem estruturas mais ou menos rígidas. Em uma notícia, por exemplo, é padrão iniciar com o lide; em uma carta, o uso do cabeçalho tende a mostrar ao corretor uma compreensão das características do gênero. Falarei mais sobre gêneros variados no futuro. Por enquanto, fica a dica: conheça as características do gênero ou tipo de texto que você está escrevendo.
4 – “É verdade que eu não posso dar minha opinião em uma dissertação? Usar expressões como ‘eu acho’ e ‘eu acredito’ prejudica a nota?”
Uma dissertação argumentativa, o gênero mais cobrado em concursos e vestibulares, é um texto que busca argumentar sobre uma tese (opinião), de modo a convencer um público universal de sua validade. Uma das características do texto dissertativo é a impessoalidade: para atingir um público mais geral, um recurso válido é justamente o autor não se colocar individualmente no texto. Observe que em muitos editoriais (um gênero muito próximo da dissertação) de jornais como a Folha de SP, as afirmações são feitas como se fossem verdades absolutas e não a visão particular do autor do texto. Então, a resposta mais correta à pergunta seria a seguinte: você deve colocar sua opinião, mas não no formato de opinião. Ao invés de escrever “eu acho que a educação deveria receber mais investimentos”, escreva “a educação deveria receber mais investimentos”. A opinião é exatamente a mesma, mas a forma é mais adequada ao gênero dissertação argumentativa.
Isso quer dizer que o uso da primeira pessoa do singular (“eu”) leva à anulação do texto? Nem sempre. Há dissertações da Unicamp, por exemplo, que usaram pontualmente a 1ª pessoa do singular e não apenas não foram anuladas como ainda se tornaram exemplos de textos acima da média (não acredita? Confira o terceiro parágrafo do texto “Brasil: gigante hipertenso com problemas na circulação” na página da Comvest: http://www.comvest.unicamp.br/vest_anteriores/2007/download/comentadas/1fase.pdf)
O mais importante, para respeitar o gênero dissertação argumentativa, é que o uso da 1ª pessoa do singular não leve à argumentação pessoal. Não é um problema grave escrever “acredito que, devido à impossibilidade de determinar a identidade racial de uma pessoa, as cotas raciais podem ser desvirtuadas por pessoas desonestas”. Mas é um problema escrever “acho que as cotas raciais são ruins, porque meu vizinho falou que é negro só pra pegar a minha vaga, e ele é mais branco que eu”. O problema aí não está no uso da 1ª pessoa, mas sim no fato de que o argumento que se segue é muito pessoal e talvez não seja convincente para a maioria dos leitores. Uma experiência particular do autor do texto não prova que uma medida deve ser tomada para toda uma sociedade.
Para responder de forma resumida: é mais seguro não usar a 1ª pessoa do singular em uma dissertação, para diminuir a tentação de apresentar argumentos pessoais. Mas, na maioria dos casos, se você deixou escapar um ‘acredito’ na sua dissertação mais recente, isso não o coloca automaticamente fora da disputa.
5 – “É verdade que textos criativos são mais valorizados?”
Não em vestibulares sérios. O motivo para isso é extremamente simples: a criatividade é uma característica quase impossível de julgar com imparcialidade. Dessa forma, se um vestibular valorizasse esse elemento na correção, estaria admitindo ser uma prova de sorte. Afinal, o que um corretor considera criativo depende muito do conhecimento de mundo desse corretor. Imagine, por exemplo, que você leu um texto muito bom em uma coletânea de dissertações e resolveu usar as ideias desse texto no vestibular. Um corretor que conhece a sua fonte iria dar uma nota baixa, enquanto um corretor que a desconhece iria considerar seu texto excelente. Essa situação definitivamente não seria justa.
Por isso, não acredite em lendas como a do vestibulando que teria conseguido nota máxima na USP escrevendo ‘ping, ping, ping... ’ em uma redação sobre a água (em um dos próximos posts, vou listar uma série de redações que supostamente teriam nota máxima devido à criatividade).
O que realmente acontece e que pode levar à impressão de que a criatividade é a chave de uma boa redação é que os textos bem escritos normalmente são diferentes dos textos ruins e, com isso, criam a impressão de que seu autor teve alguma ‘sacada’ genial. Porém, o mais provável é que as ideias que parecem originais e criativas para um leitor pouco experiente sejam ideias comuns para quem lê diariamente. Muitos textos são bons e diferentes da média ao mesmo tempo: mas eles não são bons por serem diferentes e sim diferentes por serem bons. Se você se preocupar não em ser criativo, mas sim em respeitar a proposta e usar ideias maduras e bem planejadas, seu texto vai ficar diferente da maioria pelo simples fato de que a maioria das pessoas não faz isso.
Este post está ficando longo demais, por isso vou parando por aqui, mas prometo voltar ao assunto no futuro. No próximo post, vou explicar minhas hipóteses sobre como algumas características do sistema de ensino acabam propagando as lendas comentadas aqui. Até lá e boas redações.

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