segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Argumentos sobre a pena de morte

Já há algum tempo, eu tenho interesse em discutir ideias do senso comum que circulam por aí sem contestação. Vou começar aproveitando um assunto polêmico, que faz parte do inconsciente coletivo quando se pensa em redação: a pena de morte. O assunto voltou à tona agora, com a execução do traficante brasileiro preso na Indonésia, e tem mobilizado muitos argumentos favoráveis e contrários. Mas o nível da discussão, infelizmente, não parece ter evoluído.

Dois argumentos muito comuns podem ser eliminados com pouquíssimo esforço:

1: o argumento de que a pena de morte economizaria dinheiro: no Kansas, em 2003, uma pesquisa concluiu que um único caso de pena de morte custava, em média, US$ 1,26 milhão, contra US$ 740 mil de um caso comum até o fim da pena. Obviamente, não temos dados equivalentes no Brasil, mas é possível imaginar que a relação seria semelhante. Além disso, o fato de o Brasil não ter nenhuma infraestrutra para a pena capital em seus presídios provavelmente levaria a gastos extras.

2: o argumento de que a pena capital diminuiria a superlotação nos presídios: em todo o mundo, cerca de 1000 pessoas são executadas por ano; o Brasil tem um déficit de 200 mil vagas em presídios – 563 mil presos, 363 mil vagas; ou seja, o impacto da pena de morte seria desprezível.

Mas o que eu quero discutir aqui é um argumento mais etéreo: o de que a pena de morte teria um efeito psicológico, inibindo os futuros criminosos. Acompanhe:

Se a pena de morte for aprovada no Brasil, o mais provável é que use um sistema semelhante ao dos Estados Unidos, que é culturalmente mais próximo de nós do que a Indonésia, a China ou a Arábia Saudita. Portanto, vou usar os números dos nossos vizinhos da América do Norte como base.

Os Estados Unidos têm cerca de 320 milhões de habitantes; nos últimos quatro anos para os quais há dados oficiais (2010 a 2013), foram executados 162 condenados nos 36 estados que aplicam a pena capital (média de 40,5 por ano).

Alguém pode dizer: “Pelo menos, eles servem de exemplo para os que ainda não cometeram crimes; se a pessoa sabe que vai morrer, ela desiste do crime e começa a agir como um cidadão de bem”.

Isso até poderia ser verdade... mas o que ocorre é que é muito mais provável alguém que cometeu um crime morrer no Brasil do que nos Estados Unidos! No mesmo período em que a pena capital estadunidense matou 162 condenados, a polícia brasileira, sem julgamento, foi responsável pela morte de 8.378 pessoas!

Para não ser injusto, vou computar aqui também as pessoas mortas pela polícia nos Estados Unidos nesses 4 anos: 1.531. Fazendo todas as contas, temos o seguinte:

Pessoas mortas pelo Estado brasileiro (polícia + pena de morte): 2.094 por ano
Pessoas mortas pelo Estado estadunidense (polícia + pena de morte): 423 por ano

Levando em conta a população dos dois países, a probabilidade de uma pessoa morrer em consequência de um conflito com a lei é quase OITO VEZES maior no Brasil do que nos 
Estados Unidos. Logo, chegamos a duas conclusões simples:

1 – o Brasil já aplica a pena de morte, extraoficialmente;

2- se o medo de morrer por ter cometido um crime fosse um desmotivador eficiente, era de se esperar que o número de crimes violentos no Brasil fosse menor (não é o que ocorre: o Brasil tem uma taxa de 21 assassinatos por 100 mil habitantes, contra 4,2 dos Estados Unidos).

É compreensível que, em momentos de desespero, as pessoas sejam seduzidas por argumentos falaciosos e fáceis. No entanto, adotar esse discurso apenas dificulta a compreensão e a solução dos problemas. Por isso, mesmo quando você estiver incomodado com uma situação e até com raiva por não ver uma solução próxima, não saia adotando a primeira proposta sem sentido que aparecer no Facebook. Tente analisar os detalhes e ver se o que foi sugerido realmente faz sentido.

Pretendo comentar mais argumentos do senso comum no futuro. Se alguém tiver sugestões, pode mandar por aqui. Até breve.

Fontes:

Custo de execuções no Kansas:
ttp://www.deathpenaltyinfo.org/node/1080

Mortes em confronto com a polícia no Brasil:
Aplicações da pena de morte nos Estados Unidos: http://www.amnestyusa.org/pdfs/DeathPenaltyFactsMay2012.pdf

Déficit de vagas em presídios no Brasil
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID364AC56ADE924046B46C6B9CC447B586PTBRNN.htm

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Redação na Unicamp 2015: Gênero 2 - Carta-convite

Em 2015, temos mais uma vez uma carta na prova da Unicamp. Agora, é uma carta-convite que também tem características de carta argumentativa.

Veja a proposta abaixo ou na página da Comvest: http://www.comvest.unicamp.br/vest2015/F2/provas/redport.pdf

Em busca de soluções para os inúmeros incidentes de violência ocorridos na escola em que estudam, um grupo de alunos, inspirados pela matéria “Conversar para resolver conflitos”, resolveu fazer uma primeira reunião para discutir o assunto. Você ficou responsável pela elaboração da carta-convite dessa reunião, a ser endereçada pelo grupo à comunidade escolar – alunos, professores, pais, gestores e funcionários.
A carta deverá convencer os membros da comunidade escolar a participarem da reunião, justificando a importância desse espaço para a discussão de ações concretas de enfrentamento do problema da violência na escola. Utilize as informações da matéria abaixo para construir seus argumentos e mostrar possibilidades de solução.
Lembre-se de que o grupo deverá assinar a carta e também informar o dia, o horário e o local da reunião.

Conversar para resolver conflitos.
Quando a escuta e o diálogo são as regras, surgem soluções pacíficas para as brigas.

Alunos que brigam com colegas, professores que desrespeitam funcionários, pais que ofendem os diretores. Casos de violência na escola não faltam. A pesquisa O Que Pensam os Jovens deBaixa Renda sobre a Escola, realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) sob encomenda da Fundação Victor Civita (FVC), ambos de São Paulo, revelou que 11% dos estudantes se envolveram em conflitos com seus pares nos últimos seis meses e pouco mais de 8% com professores, coordenadores e diretores. Poucas escolas refletem sobre essas situações e elaboram estratégias para construir uma cultura da paz. A maioria aplica punições que, em vez de acabarem com o enfrentamento, estimulam esse tipo de atitude e tiram dos jovens a autonomia para resolver problemas.
Segundo Telma Vinha, professora de Psicologia Educacional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colunista da revista NOVA ESCOLA, implementar um projeto institucional de mediação de conflitos é fundamental para implantar espaços de diálogo sobre a qualidade das relações e os problemas de convivência e propor maneiras não violentas de resolvê-los. Assim, os próprios envolvidos em uma briga podem chegar a uma solução pacífica.
Por essa razão, é importante que, ao longo do processo de implantação, alunos, professores,
gestores e funcionários sejam capacitados para atuar como mediadores. Esses, por sua vez, precisam ter algumas habilidades como saber se colocar no lugar do outro, manter a imparcialidade, ter cuidado com as palavras e se dispor a escutar.
O projeto inclui a realização de um levantamento sobre a natureza dos conflitos e um trabalho
preventivo para evitar a agressão como resposta para essas situações. Além disso, ao sensibilizar os professores e funcionários, é possível identificar as violências sofridas pelos diferentes segmentos e atuar para acabar com elas.

Pessoas capacitadas atuam em encontros individuais e coletivos

Há duas formas principais de a mediação acontecer, segundo explica Lívia Maria Silva Licciardi,
doutoranda em Psicologia Educacional, Desenvolvimento Humano e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A primeira é quando há duas partes envolvidas. Nesse caso, ambos os lados se apresentam ou são chamados para conversar com os mediadores - normalmente eles atuam em dupla para que a imparcialidade no encaminhamento do caso seja garantida - em uma sala reservada para esse fim. Eles ouvem as diversas versões, dirigem a conversa para tentar fazer com que todos entendam os sentimentos colocados em jogo e ajudam na resolução do episódio, deixando que os envolvidos proponham caminhos para a decisão final.
A segunda forma é utilizada quando acontece um problema coletivo - um aluno é excluído pela turma, por exemplo. Diante disso, o ideal é organizar mediações coletivas, como uma assembleia. Nelas, um gestor ou um professor pauta o encontro e conduz a discussão, sem expor a vítima nem os agressores. "O objetivo é fazer com que todos falem, escutem e proponham saídas para o impasse. Assim, a solução deixa de ser punitiva e passa a ser formativa, levando à corresponsabilização pelos resultados", diz Ana Lucia Catão, mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
Ela ressalta que o debate é enriquecido quando se usam outros recursos: filmes, peças de teatro e músicas ajudam na contextualização e compreensão do problema.
No Colégio Estadual Federal (CEF) 602, no Recanto das Emas, subdistrito de Brasília, o Projeto Estudar em Paz, realizado desde 2011 em parceria com o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da Universidade de Brasília (NEP/UnB), tem 16 alunos mediadores formados e outros 30 sendo capacitados.
A instituição conta ainda com 28 professores habilitados e desde o começo deste ano o projeto faz parte da formação continuada. "Os casos de violência diminuíram. Recebo menos alunos na minha sala e as depredações do patrimônio praticamente deixaram de existir. Ao virarem protagonistas das decisões, os estudantes passam a se responsabilizar por suas atitudes", conta Silvani dos Santos, diretora. (...)
"Essas propostas trazem um retorno muito grande para as instituições, que conseguem resultados satisfatórios. É preciso, porém, planejá-las criteriosamente", afirma Suzana Menin, professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

(Adaptado de Karina Padial, Conversar para resolver. Gestão Escolar. São Paulo, no
. 27, ago/set 2013. http://gestaoescolar.abril.com.br/formacao/conversar-resolver-conflitos-brigas-dialogo-762845.shtml?page=1. Acessado em 02/10/2014.)

Essa proposta é uma das mais claras dos últimos anos. O propósito da carta-convite é explícito, assim como algumas características que costumam causar dúvidas (por exemplo, a necessidade de assinatura da carta). Mesmo assim, vamos analisar cada elemento da proposta:

1. O propósito:

O propósito principal da carta é convidar membros da comunidade escolar para uma reunião. Mais especificamente, podemos dividir esse propósito em quatro partes:

  1. convidar os membros da comunidade escolar a participarem de uma reunião;
  2. utilizar informações da matéria apresentada para convencer a comunidade escolar a atender ao convite;
  3. Mostrar possibilidades de solução para o problema;
  4. informar o dia, o horário e o local da reunião.

Embora pareçam muitas obrigações, elas fazem bastante sentido para a proposta e estão apresentadas de forma explícita. Acredito, portanto, que a maioria dos candidatos tenha conseguido cumprir essa parte da tarefa.
A maior dificuldade, provavelmente, envolveu as partes 2 e 3 do propósito. Ainda assim, não se trata de uma grande barreira, já que a matéria oferece dados mais que suficientes para argumentar sobre a necessidade de discutir o problema da violência. Por exemplo, alguns trechos que poderiam ser aproveitados:

Segundo Telma Vinha (…), implementar um projeto institucional de mediação de conflitos é fundamental para implantar espaços de diálogo sobre a qualidade das relações e os problemas de convivência e propor maneiras não violentas de resolvê-los.

(…) é importante que, ao longo do processo de implantação, alunos, professores, gestores e funcionários sejam capacitados para atuar como mediadores.

(…) o ideal é organizar mediações coletivas, como uma assembleia. Nelas, um gestor ou um professor pauta o encontro e conduz a discussão, sem expor a vítima nem os agressores.

Ao virarem protagonistas das decisões, os estudantes passam a se responsabilizar por suas atitudes.

A leitura atenta do texto de apoio deixa claro que o diálogo é o melhor caminho: a proposta de solução para o problema deveria incluir, de alguma maneira, a existência de encontros regulares em que a violência seja discutida abertamente por todos os envolvidos (alunos, professores e funcionários, principalmente) e os argumentos deveriam se basear nesse princípio. A própria ideia dos estudantes de convidar a comunidade escolar para uma reunião em que o problema será debatido é um argumento favorável à necessidade do diálogo.
Quanto ao convite propriamente dito e às informações, acredito que deveriam aparecer da maneira mais explícita possível. Por exemplo: “portanto, convidamos toda a comunidade escolar (pais, alunos, professores, gestores e funcionários) para a reunião que ocorrerá no auditório da escola, no dia 9 de fevereiro de 2015, a partir das 19h”. A presença das palavras usadas pela própria banca elaboradora ajuda a mostrar compreensão da proposta e facilita o trabalho do avaliador, quando ele for procurar elementos para se certificar de que as tarefas foram todas cumpridas.


2. O locutor:

A banca a pediu claramente que o candidato se colocasse como representante de um grupo de alunos interessados em promover debates sobre a violência na escola. Como as características do aluno que está escrevendo o texto não são mencionadas (e, ao que tudo indica, não são relevantes), o texto deveria ser escrito na 1a pessoa do plural (“nós, estudantes da escola tal...”).

A proposta não deixa claro se os estudantes fazem parte de uma série específica ou não. Pela leitura do texto motivador, e considerando a abrangência do problema da violência nas escolas, acredito que o mais lógico seria escrever a carta em nome dos alunos da escola como um todo, mas não creio que a Unicamp irá penalizar textos em que os locutores pertençam todos a uma mesma sala ou a outro grupo específico (como o grêmio estudantil, por exemplo).

Lembre-se de que foi pedido, explicitamente, que o grupo assinasse a carta-convite. Acredito que o modo ideal de cumprir essa tarefa seria simplesmente escrever, ao final do texto, algo como

“Atenciosamente,
Alunos da Escola Estadual Fulano de Tal”.
3. O interlocutor:

A carta deveria ser dirigida à comunidade escolar. Imagino que a banca examinadora aceitará essa denominação genérica, mas seria mais seguro discriminar os participantes (pais, alunos, professores, gestores e funcionários). Como estamos falando de um grupo muito heterogêneo de interlocutores, a Unicamp provavelmente não espera que os textos desenvolvam a imagem dessas pessoas. A única característica que eu vejo como interessante é a que todos têm em comum: a participação na vida escolar (que inclui, presumivelmente, o interesse em diminuir o número de casos de violência).

Como se trata de uma carta, a menção ao interlocutor deve estar explícita, logo no início (“Aos pais, alunos, professores, gestores e funcionários que formam a comunidade do Colégio Tal”) e deve ser explorada durante o texto. Um problema muito frequente em cartas cobradas em vestibulares é a ausência de interlocução. Para melhorar sua pontuação, o candidato deve ter feito referências aos interlocutores durante todo o texto, usando expressões como “vocês, que se importam com a boa convivência nesta escola, precisam colaborar para discutirmos abertamente o problema da violência em nosso colégio”.

4. Meio e estrutura:

Ao contrário de anos anteriores, em que as cartas tinham características híbridas que podem ter causado dúvidas, este ano a Unicamp pediu uma carta mais tradicional: provavelmente, espera-se a estrutura com data, local e destinatários no alto da página e depedida e assinatura no final. Não há motivos para pensarmos que outra estrutura seria mais valorizada, embora a Unicamp provavelmente aceite variações do modelo clássico (por exemplo, ausência de data e local).

Uma forma de garantir o cumprimento da tarefa é usar, sempre que o gênero permitir, o próprio nome do gênero. Neste caso, seria possível usar uma expressão como “estamos enviando esta carta-convite porque queremos...”.

5. A linguagem:

Sobre a linguagem, espera-se que o candidato escreva um texto formal e que use interlocução, de modo a caracterizar a carta. A ausência de interlocução será, provavelmente, uma falha muito mais grave do que a ausência de aspectos formais, como o cabeçalho.

É isso. A carta-convite, embora não seja um gênero tão previsível, não deve ter causado muitas dificuldades para os alunos bem preparados. Além disso, a proposta deste ano estava mais claramente formulada, o que deve ter facilitado o trabalho de quem a leu com atenção. Se ainda houver dúvidas, podem perguntar por aqui e vou responder na medida do possível (as férias estão acabando...).


Até breve.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A Redação na Unicamp 2015: Gênero 1 - Síntese

Neste e no próximo post, vou comentar as propostas do vestibular Unicamp 2015. Não é nada oficial, mas vou tentar ajudar a tirar aquelas dúvidas que ficam depois da prova. Qualquer coisa, pode me mandar perguntas nos comentários e eu tento, na medida do possível, responder a todas.

O primeiro gênero pedido na prova da Unicamp 2015 foi uma síntese. Fiquei meio triste, porque a proposta me pareceu muito semelhante à do resumo, de 2013. Porém, houve algumas mudanças fundamentais, que tornaram o gênero mais factível e, espero eu, devem ter tornado mais simples a tarefa de corrigir adequadamente os textos.

Para quem estiver pensando em brigar com seus professores, que gastaram três aulas para falar sobre artigo de opinião e não dedicaram nenhuma à síntese, vale o consolo de sempre: a Unicamp parece estar dedicada a colocar na prova, todos os anos, um gênero de nome inesperado, que dificilmente se trabalha em sala de aula. Porém, isso não significa um aumento de dificuldade: lendo a proposta com atenção, é possível entender o que a Unicamp espera do gênero nessa situação específica.

Veja a transcrição da proposta abaixo ou, no formato original, na página da Comvest: http://www.comvest.unicamp.br/vest2015/F2/provas/redport.pdf

Você integra um grupo de estudos formado por estudantes universitários. Periodicamente, cada membro apresenta resultados de leituras realizadas sobre temas diversos. Você ficou responsável por elaborar uma síntese sobre o tema humanização no atendimento à saúde, que deverá ser escrita em registro formal. As fontes para escrever a síntese são um trecho de um artigo científico (excerto A) e um trecho de um ensaio (excerto B). Seu texto deverá contemplar:

            a) o conceito de humanização no atendimento à saúde;
            b) o ponto de vista de cada texto sobre o conceito, assim como as principais         informações que sustentam esses pontos de vista;
            c) as relações possíveis entre os dois pontos de vista.

Excerto A

A humanização é vista como a capacidade de oferecer atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos com o bom relacionamento.
O Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) destaca a importância da conjugação do binômio "tecnologia" e "fator humano e de relacionamento". Há um diagnóstico sobre o divórcio entre dispor de alta tecnologia e nem sempre dispor da delicadeza do cuidado, o que desumaniza a assistência.
Por outro lado, reconhece-se que não ter recursos tecnológicos, quando estes são necessários, pode ser um fator de estresse e conflito entre profissionais e usuários, igualmente desumanizando o cuidado. Assim, embora se afirme que ambos os itens constituem a qualidade do sistema, o "fator humano" é considerado o mais estratégico pelo documento do PNHAH, que afirma:
(...) as tecnologias e os dispositivos organizacionais, sobretudo numa área como a da saúde, não funcionam sozinhos – sua eficácia é fortemente influenciada pela qualidade do fator humano e do relacionamento que se estabelece entre profissionais e usuários no processo de atendimento. (Ministério da Saúde, 2000).

(Adaptado de Suely F. Deslandes, Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Ciência & saúde coletiva. Vol. 9, n. 1, p. 9-10. Rio de Janeiro, 2004.)

Excerto B

A famosa Faculdade para Médicos e Cirurgiões da Escola de Medicina da Columbia University, em Nova York, formou recentemente um Programa de Medicina Narrativa que se ocupa daquilo que veio a se chamar “ética narrativa”. Ele foi organizado em resposta à percepção recrudescente do sofrimento – e até das mortes – que podia ser atribuído parcial ou totalmente à atitude dos médicos de ignorarem o que os pacientes contavam sobre suas doenças, sobre aquilo com que tinham que lidar, sobre a sensação de serem negligenciados e até mesmo abandonados. Não é que os médicos não acompanhassem seus casos, pois eles seguiam meticulosamente os prontuários de seus pacientes: ritmo cardíaco, hemogramas, temperatura e resultados dos exames especializados. Mas, para parafrasear uma das médicas comprometidas com o programa, eles simplesmente não ouviam o que os pacientes lhes contavam: as histórias dos pacientes. Na sua visão, eles eram médicos “que se atinham aos fatos”. “Uma vida”, para citar a mesma médica, “não é um registro em um prontuário”. Se um paciente está na expectativa de um grande e rápido efeito por parte de uma intervenção ou medicação e nada disso acontece, a queda ladeira abaixo tem tanto o seu lado biológico como psíquico.
“O que é, então, a medicina narrativa?”, perguntei*. “Sua responsabilidade é ouvir o que o paciente tem a dizer, e só depois decidir o que fazer a respeito. Afinal de contas, quem é o dono da vida, você ou ele?”. O programa de medicina narrativa já começou a reduzir o número de mortes causadas por incompetências narrativas na Faculdade para Médicos e Cirurgiões.

*A pergunta é feita por Jerome Bruner a Rita Charon, idealizadora do Programa de Medicina Narrativa.

(Adaptado de Jerome Bruner, Fabricando histórias: direito, literatura, vida. São Paulo: Letra e Voz, 2014, p. 115-116.)

Como de costume nas provas da Unicamp, não basta saber o nome do gênero: muito mais importante é entender as partes que o compõem e o propósito específico desse gênero na situação colocada pela banca elaboradora. Ao mesmo tempo, não há motivo para se desesperar se o gênero parece desconhecido, porque a própria prova oferece informações suficientes para o candidato produzir seu texto.

1. O propósito:

Neste ano, voltou a listinha de obrigações. Mais uma vez apareceram informações que servem apenas para a contextualização, mas que não deveriam ser incluídas na versão final do texto (isso já aconteceu no verbete, no resumo e no relatório; é mais um motivo pelo qual vale muito a pena estudar as provas anteriores)

O propósito da síntese era, basicamente, reproduzir as informações centrais de dois outros textos, apresentados pela banca. Como é bastante comum nas provas recentes da Unicamp, não se exige do candidato um conhecimento prévio do assunto. Eu costumo dizer que a redação da Unicamp é essencialmente uma prova de tradução, não de criação: o que a banca espera é que o candidato transfira as ideias de um texto escrito em um gênero para um gênero diferente.
De forma semelhante à do relatório do ano passado, as instruções do propósito estavam bem claramente definidas, nos tópicos a), b) e c), que diziam quais informações deveriam ser buscadas nos textos e incluídas na síntese:

            a) o conceito de humanização no atendimento à saúde;
            b) o ponto de vista de cada texto sobre o conceito, assim como as principais         informações que sustentam esses pontos de vista;
            c) as relações possíveis entre os dois pontos de vista.

(curiosidade: no ano passado, as informações foram todas passadas em um texto corrido; antes, até 2013, a Unicamp usava pontinhos, e não letras, para especificar as tarefas. Se você também notou isso, está na hora de procurar um hobby).

Para cumprir a parte a) da proposta, o candidato deveria encontrar em cada um dos textos a definição de humanização no atendimento à saúde. No primeiro, essa definição estabelece uma relação entre os recursos humanos e tecnológicos e está apresentada de forma bem direta, logo no primeiro parágrafo:
       
     (…) a capacidade de oferecer atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos com o bom relacionamento.

Como a tarefa do aluno era elaborar uma síntese das informações de outros textos, acredito que não haveria problemas se esse trecho fosse usado na íntegra. Afinal, ele cumpre adequadamente a tarefa de definir o conceito e seu formato não é incompatível com o gênero síntese.
Já o segundo texto não tem uma definição tão direta de humanização no atendimento à saúde, mas sua leitura atenta permite concluir que ele identifica esse conceito com a atenção dada pelo médico ao paciente.

Para cumprir a tarefa b), o candidato deveria mostrar o ponto de vista de cada texto sobre os conceitos e também os argumentos que sustentam esses pontos de vista. O primeiro texto reproduz a opinião do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), segundo a qual a humanização é mais importante que a tecnologia (é usado o argumento de que os equipamentos tecnológicos não funcionam sozinhos). Já o segundo texto menciona a Escola de Medicina da Columbia University, em Nova York, e seu Programa de Medicina Narrativa. O artigo deixa claro que é necessário respeitar a visão do paciente sobre o processo, escutando o que ele tem a dizer (argumento: a vida pertence ao paciente, não ao médico). Para reforçar a efetividade do ato de ouvir o paciente, o texto informa, no último parágrafo, que o número de mortes diminuiu após a implantação do programa.

Cumpridas as tarefas a) e b), é fácil concluir com a c): o que une os dois textos é a percepção de que o fator humano é o maior responsável pelo sucesso dos tratamentos de saúde, embora seja muitas vezes colocado em segundo plano em relação à tecnologia ou aos dados técnicos da doença.

2. O locutor:

A banca pediu ao candidato que se colocasse como membro de um grupo de estudos formado por estudantes universitários. Alguns candidatos devem, por esse motivo, ter explicitado esse fato, dizendo algo do tipo “sou membro de um grupo de estudos e estou apresentando minha síntese sobre a leitura dos textos tal e tal...”. Porém, as informações presentes na proposta dão a entender que não é essa a intenção da banca, já que o propósito do gênero não é auxiliado por esse tipo de intervenção pessoal. Minha avaliação é a de que os examinadores irão valorizar textos impessoais, como ocorreu nos gêneros verbete e resumo.

Uma característica que foi importante no resumo, de 2013, e deve ser novamente relevante aqui, é a necessidade de marcar claramente a distância entre o locutor da síntese e os autores dos textos originais. Ou seja, ao invés de se apropriar das informações dos textos, escrevendo algo como “a humanização é a capacidade de oferecer atendimento de qualidade...”, o candidato provavelmente deveria escrever algo como

De acordo com o texto “Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar”, de Suely F. Deslandes, a humanização é a capacidade de oferecer (...); no texto, a autora defende que (...)”

Com o uso desse tipo de linguagem, o leitor percebe rapidamente que está diante de um texto que dialoga com outro texto.

3. O interlocutor:

Embora isso não tenha sido explicitado, tudo indica que os interlocutores do texto são os outros membros do grupo de estudos. São pessoas que esperam receber o texto e sabem que são seus destinatários. Portanto, não parece haver necessidade de fazer referência direta a eles, tanto pelo propósito do gênero (essencialmente informativo) quanto pelo fato de que o texto será entregue diretamente aos leitores. Por isso, podemos imaginar um interlocutor universal como o mais adequado, principalmente se pensarmos na objetividade característica de um texto informativo (foi o que ocorreu também com os gêneros verbete, resumo e relatório). Para se dirigir a um interlocutor universal, basta não mencionar explicitamente quem é o leitor do texto.


4. Meio/estrutura:

A palavra síntese, embora não seja a primeira a vir à mente quando pensamos em gêneros textuais, é relativamente conhecida. Acredito que a maior parte dos alunos entendeu o que foi pedido sem muitas dificuldades. É claro que, como sempre é o caso na Unicamp, não basta conhecer o nome do gênero. Na prova de 2015, por exemplo, a síntese pedida é voltada a um grupo de estudantes e trata de um assunto de interesse do curso deles. É diferente, por exemplo, de fazer uma síntese dos dados econômicos de uma região, a ser entregue a um banco de investimentos.

Faz sentido que a síntese pedida pela Unicamp tenha um título do tipo “Síntese de textos sobre humanização no atendimento à saúde”. O motivo do título é simples: como o grupo irá receber (suponho) uma série de textos sobre temas diversos, é natural que esses temas sejam identificados, para facilitar a sua compreensão e organização. Não acredito, porém, que a Unicamp irá penalizar fortemente textos sem título. Porém, o uso da palavra “síntese” no título seria uma maneira simples de mostrar que o candidato entendeu qual é o gênero a ser produzido.

Outra possível estratégia para aumentar a clareza e caracterizar o texto como uma síntese é fazer uma topicalização da análise, separando os elementos a), b) e c) do Propósito em parágrafos diferentes. Novamente, porém, não creio que esse tipo de organização seja obrigatório.


5. A linguagem:

Tudo indica que deveria ser usada uma linguagem formal, objetiva e impessoal, devido à natureza informativa do texto e a uma orientação explícita da prova, que diz:

Você ficou responsável por elaborar uma síntese (...) que deverá ser escrita em registro formal (obs: o negrito está presente na versão original).

Enfim, essa é a minha análise do primeiro gênero. Não é nada oficial, apenas a leitura que eu fiz da proposta: por isso, não fique desesperado se você tiver feito algo diferente do que eu mencionei aqui.

Amanhã, se tudo der certo, eu posto o comentário do segundo gênero (carta-convite).

Até breve.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo e o sagrado

Os terroristas que invadiram a redação do Charlie Hedbo, no dia 8 de janeiro de 2015, e assassinaram 12 pessoas, entre elas um guarda muçulmano, lutavam por aquilo que consideram sagrado. Ao sair do prédio, afirmaram ter vingado o profeta Maomé, deixando claro que se viam como guerreiros com uma missão sagrada. Para quem estiver curioso, o crime dos franceses do Charlie foi retratar, em cartuns humorísticos, o fundador do islamismo, o que muitos muçulmanos consideram uma ofensa intolerável.

A relação entre a religião islâmica e a violência é um terreno pantanoso. Não faltam analistas afirmando que o atentado nada tem de religioso e que muçulmanos de verdade jamais recorrem à violência. Ao mesmo tempo, mesquitas foram apedrejadas em várias regiões francesas e há políticos defendendo o aumento das restrições à imigração e a volta da pena de morte na França. Não é difícil prever um acirramento dos embates de fundo religioso, nos moldes maniqueístas do “Islã vs Civilização”.

Enquanto isso, no Brasil, as pessoas, em sua maioria, afirmam estar revoltadas e chocadas com o ocorrido. Muitas aproveitam para reafirmar a superioridade do cristianismo sobre o islamismo. E várias fazem comentários do tipo “não estou defendendo os terroristas, mas é isso que dá ficar ofendendo a religião dos outros”.

É esse tipo de pessoa que, se não pega armas de verdade, incentiva a violência. Pessoas que julgam a religião superior a todas as demais instituições humanas. Pessoas que “compreendem” o direito dos religiosos de se defender, porque, afinal, o respeito a sua fé é algo sagrado para eles. E, para defender o que é sagrado, os fanáticos teriam direito a reações um pouco mais “extremas” do que a maioria de nós.

Toda pessoa, a seu modo, luta pelo que é sagrado. Se parece que algumas pessoas fazem isso e outras não, é mais pela existência de várias possíveis acepções para a palavra “sagrado”. Para mim, assim como para muitas outras pessoas, cartunistas ou não, francesas ou não, a liberdade de expressão é sagrada. O direito de criticar ideias (religiões são ideias, tão sujeitas à discordância quanto sua opinião sobre cinema ou política) é sagrado. O direito de não pertencer a religião nenhuma é sagrado. O direito de fazer todas essas coisas sem temer um ataque de fanáticos religiosos é sagrado.

O semanário Charlie Hebdo já havia sido atingido por uma bomba incendiária. Seus profissionais sabiam do perigo, mas continuavam trabalhando. Foi a maneira que encontraram para mostrar o quanto a liberdade de expressão era sagrada para eles.
Não é que a sociedade ocidental, “desalmada”, não tenha nenhum apreço pelo sagrado: a verdade é que os valores que, cada vez mais, vão se tornando dominantes nas sociedades modernas incluem o uso da palavra, e não da violência, como maneira de espalhar ideias. Querer a eliminação da religião islâmica pela força, expulsar imigrantes e reinstituir a pena de morte na Europa, como alguns políticos defendem, é retroceder décadas ou séculos na evolução das sociedades.

Alguns dirão que a sociedade já está regredindo, que hoje a intolerância está maior que no passado. Não é verdade: o mundo, de maneira geral, nunca foi tão tolerante nem tão avesso ao totalitarismo. Se ataques como o do Charlie Hebdo ainda acontecem, a revolta que eles causam é cada vez mais generalizada.


A liberdade, especialmente de pensamento e opinião; a tolerância; o respeito às pessoas (não às ideias; não confunda); a compreensão da diversidade; o horror ao totalitarismo: são esses os pilares que formam os valores das pessoas racionais do século XXI, com ou sem religião. Quem acredita que isso é sagrado também precisa aceitar que há pessoas que pensam o contrário. E precisa lutar pelo que acha que é sagrado com ideias, não com violência. Caso contrário, a luta está perdida antes mesmo de começar.