Neste e no
próximo post, vou comentar as propostas do vestibular Unicamp 2015. Não é nada
oficial, mas vou tentar ajudar a tirar aquelas dúvidas que ficam depois da
prova. Qualquer coisa, pode me mandar perguntas nos comentários e eu tento, na
medida do possível, responder a todas.
O primeiro
gênero pedido na prova da Unicamp 2015 foi uma síntese. Fiquei meio
triste, porque a proposta me pareceu muito semelhante à do resumo, de
2013. Porém, houve algumas mudanças fundamentais, que tornaram o gênero mais
factível e, espero eu, devem ter tornado mais simples a tarefa de corrigir
adequadamente os textos.
Para quem
estiver pensando em brigar com seus professores, que gastaram três aulas para
falar sobre artigo de opinião e não dedicaram nenhuma à síntese, vale o consolo
de sempre: a Unicamp parece estar dedicada a colocar na prova, todos os anos,
um gênero de nome inesperado, que dificilmente se trabalha em sala de aula.
Porém, isso não significa um aumento de dificuldade: lendo a proposta com
atenção, é possível entender o que a Unicamp espera do gênero nessa situação
específica.
Você
integra um grupo de estudos formado por estudantes universitários.
Periodicamente, cada membro apresenta resultados de leituras realizadas sobre
temas diversos. Você ficou responsável por elaborar uma síntese sobre o tema humanização
no atendimento à saúde, que deverá ser escrita em registro formal. As fontes para escrever a síntese são um trecho de
um artigo científico (excerto A) e um trecho de um ensaio (excerto B). Seu
texto deverá contemplar:
a) o conceito de humanização no
atendimento à saúde;
b) o ponto de vista de cada texto
sobre o conceito, assim como as principais informações
que sustentam esses pontos de vista;
c) as relações possíveis entre os
dois pontos de vista.
Excerto A
A
humanização é vista como a capacidade de oferecer atendimento de qualidade,
articulando os avanços tecnológicos com o bom relacionamento.
O Programa
Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) destaca a importância
da conjugação do binômio "tecnologia" e "fator humano e de
relacionamento". Há um diagnóstico sobre o divórcio entre dispor de alta
tecnologia e nem sempre dispor da delicadeza do cuidado, o que desumaniza a
assistência.
Por outro
lado, reconhece-se que não ter recursos tecnológicos, quando estes são
necessários, pode ser um fator de estresse e conflito entre profissionais e
usuários, igualmente desumanizando o cuidado. Assim, embora se afirme que ambos
os itens constituem a qualidade do sistema, o "fator humano" é
considerado o mais estratégico pelo documento do PNHAH, que afirma:
(...) as
tecnologias e os dispositivos organizacionais, sobretudo numa área como a da
saúde, não funcionam sozinhos – sua eficácia é fortemente influenciada pela
qualidade do fator humano e do relacionamento que se estabelece entre
profissionais e usuários no processo de atendimento. (Ministério da Saúde,
2000).
(Adaptado
de Suely F. Deslandes, Análise do discurso oficial sobre a humanização da
assistência hospitalar. Ciência & saúde coletiva. Vol. 9, n. 1, p. 9-10.
Rio de Janeiro, 2004.)
Excerto B
A famosa
Faculdade para Médicos e Cirurgiões da Escola de Medicina da Columbia
University, em Nova York, formou recentemente um Programa de Medicina Narrativa
que se ocupa daquilo que veio a se chamar “ética narrativa”. Ele foi organizado
em resposta à percepção recrudescente do sofrimento – e até das mortes – que
podia ser atribuído parcial ou totalmente à atitude dos médicos de ignorarem o
que os pacientes contavam sobre suas doenças, sobre aquilo com que tinham que
lidar, sobre a sensação de serem negligenciados e até mesmo abandonados. Não é
que os médicos não acompanhassem seus casos, pois eles seguiam meticulosamente
os prontuários de seus pacientes: ritmo cardíaco, hemogramas, temperatura e
resultados dos exames especializados. Mas, para parafrasear uma das médicas
comprometidas com o programa, eles simplesmente não ouviam o que os pacientes
lhes contavam: as histórias dos pacientes. Na sua visão, eles eram médicos “que
se atinham aos fatos”. “Uma vida”, para citar a mesma médica, “não é um
registro em um prontuário”. Se um paciente está na expectativa de um grande e
rápido efeito por parte de uma intervenção ou medicação e nada disso acontece,
a queda ladeira abaixo tem tanto o seu lado biológico como psíquico.
“O que é,
então, a medicina narrativa?”, perguntei*. “Sua responsabilidade é ouvir o que
o paciente tem a dizer, e só depois decidir o que fazer a respeito. Afinal de
contas, quem é o dono da vida, você ou ele?”. O programa de medicina narrativa
já começou a reduzir o número de mortes causadas por incompetências narrativas
na Faculdade para Médicos e Cirurgiões.
*A
pergunta é feita por Jerome Bruner a Rita Charon, idealizadora do Programa de
Medicina Narrativa.
(Adaptado
de Jerome Bruner, Fabricando histórias: direito, literatura, vida. São Paulo:
Letra e Voz, 2014, p. 115-116.)
Como de
costume nas provas da Unicamp, não basta saber o nome do gênero: muito mais
importante é entender as partes que o compõem e o propósito específico desse
gênero na situação colocada pela banca elaboradora. Ao mesmo tempo, não há
motivo para se desesperar se o gênero parece desconhecido, porque a própria
prova oferece informações suficientes para o candidato produzir seu texto.
1. O propósito:
Neste ano,
voltou a listinha de obrigações. Mais uma vez apareceram informações que servem
apenas para a contextualização, mas que não deveriam ser incluídas na versão
final do texto (isso já aconteceu no verbete,
no resumo e no relatório; é mais um motivo pelo
qual vale muito a pena estudar as provas anteriores)
O
propósito da síntese era, basicamente, reproduzir as informações centrais de
dois outros textos, apresentados pela banca. Como é bastante comum nas provas
recentes da Unicamp, não se exige do candidato um conhecimento prévio do
assunto. Eu costumo dizer que a redação da Unicamp é essencialmente uma prova
de tradução, não de criação: o que a banca espera é que o
candidato transfira as ideias de um texto escrito em um gênero para um gênero
diferente.
De forma
semelhante à do relatório do ano passado, as instruções do propósito
estavam bem claramente definidas, nos tópicos a), b) e c), que diziam quais
informações deveriam ser buscadas nos textos e incluídas na síntese:
a) o conceito de humanização no
atendimento à saúde;
b) o ponto de vista de cada texto
sobre o conceito, assim como as principais informações
que sustentam esses pontos de vista;
c) as relações possíveis entre os
dois pontos de vista.
(curiosidade:
no ano passado, as informações foram todas passadas em um texto corrido; antes,
até 2013, a Unicamp usava pontinhos, e não letras, para especificar as tarefas.
Se você também notou isso, está na hora de procurar um hobby).
Para
cumprir a parte a) da proposta, o candidato deveria encontrar em cada um dos
textos a definição de humanização no atendimento à saúde. No primeiro,
essa definição estabelece uma relação entre os recursos humanos e tecnológicos
e está apresentada de forma bem direta, logo no primeiro parágrafo:
(…) a capacidade
de oferecer atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos com o bom relacionamento.
Como a tarefa do aluno era elaborar uma síntese das
informações de outros textos, acredito que não haveria problemas se esse trecho
fosse usado na íntegra. Afinal, ele cumpre adequadamente a tarefa de definir o
conceito e seu formato não é incompatível com o gênero síntese.
Já o segundo texto não tem uma definição tão direta de humanização
no atendimento à saúde, mas sua leitura atenta permite concluir que ele
identifica esse conceito com a atenção dada pelo médico ao paciente.
Para cumprir a tarefa b), o candidato deveria mostrar o
ponto de vista de cada texto sobre os conceitos e também os argumentos que
sustentam esses pontos de vista. O primeiro texto reproduz a opinião do Programa
Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), segundo a qual a
humanização é mais importante que a tecnologia (é usado o argumento de que os
equipamentos tecnológicos não funcionam sozinhos). Já o segundo texto menciona
a Escola de Medicina da Columbia University, em Nova York, e seu Programa de
Medicina Narrativa. O artigo deixa claro que é necessário respeitar a visão do
paciente sobre o processo, escutando o que ele tem a dizer (argumento: a vida
pertence ao paciente, não ao médico). Para reforçar a efetividade do ato de
ouvir o paciente, o texto informa, no último parágrafo, que o número de mortes
diminuiu após a implantação do programa.
Cumpridas as tarefas a) e b), é fácil concluir com a c): o
que une os dois textos é a percepção de que o fator humano é o maior
responsável pelo sucesso dos tratamentos de saúde, embora seja muitas vezes colocado
em segundo plano em relação à tecnologia ou aos dados técnicos da doença.
2. O
locutor:
A banca pediu
ao candidato que se colocasse como membro
de um grupo de estudos formado
por estudantes universitários. Alguns candidatos devem, por esse motivo,
ter explicitado esse fato, dizendo algo do tipo “sou membro de um grupo de estudos
e estou apresentando minha síntese sobre a leitura dos textos tal e tal...”.
Porém, as informações presentes na proposta dão a entender que não é essa a
intenção da banca, já que o propósito do gênero não é auxiliado por esse tipo
de intervenção pessoal. Minha avaliação é a de que os examinadores irão
valorizar textos impessoais, como ocorreu nos gêneros verbete e resumo.
Uma
característica que foi importante no resumo, de 2013, e deve ser novamente
relevante aqui, é a necessidade de marcar claramente a distância entre o
locutor da síntese e os autores dos textos originais. Ou seja, ao invés de se
apropriar das informações dos textos, escrevendo algo como “a humanização é a
capacidade de oferecer atendimento de qualidade...”, o candidato provavelmente
deveria escrever algo como
De acordo com o texto “Análise do
discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar”, de Suely F.
Deslandes, a humanização é a capacidade de oferecer (...); no texto, a autora
defende que (...)”
Com o uso
desse tipo de linguagem, o leitor percebe rapidamente que está diante de um
texto que dialoga com outro texto.
3. O
interlocutor:
Embora
isso não tenha sido explicitado, tudo indica que os interlocutores do texto são
os outros membros do grupo de estudos. São pessoas que esperam receber o texto
e sabem que são seus destinatários. Portanto, não parece haver necessidade de
fazer referência direta a eles, tanto pelo propósito do gênero (essencialmente
informativo) quanto pelo fato de que o texto será entregue diretamente aos
leitores. Por isso, podemos imaginar um interlocutor universal como o mais adequado, principalmente se pensarmos na
objetividade característica de um texto informativo (foi o que ocorreu também
com os gêneros verbete, resumo e relatório). Para se dirigir a um interlocutor universal, basta não
mencionar explicitamente quem é o leitor do texto.
4. Meio/estrutura:
A palavra síntese, embora não seja a primeira a
vir à mente quando pensamos em gêneros textuais, é relativamente conhecida.
Acredito que a maior parte dos alunos entendeu o que foi pedido sem muitas
dificuldades. É claro que, como sempre é o caso na Unicamp, não basta conhecer
o nome do gênero. Na prova de 2015, por exemplo, a síntese pedida é voltada a
um grupo de estudantes e trata de um assunto de interesse do curso deles. É
diferente, por exemplo, de fazer uma síntese dos dados econômicos de uma
região, a ser entregue a um banco de investimentos.
Faz
sentido que a síntese pedida pela Unicamp tenha um título do tipo “Síntese de textos sobre humanização no atendimento
à saúde”. O motivo do título é simples: como o grupo irá receber (suponho) uma
série de textos sobre temas diversos, é natural que esses temas sejam
identificados, para facilitar a sua compreensão e organização. Não acredito,
porém, que a Unicamp irá penalizar fortemente textos sem título. Porém, o uso
da palavra “síntese” no título seria uma maneira simples de mostrar que o
candidato entendeu qual é o gênero a ser produzido.
Outra
possível estratégia para aumentar a clareza e caracterizar o texto como uma
síntese é fazer uma topicalização da análise, separando os elementos a), b) e
c) do Propósito em parágrafos diferentes. Novamente, porém, não creio que esse
tipo de organização seja obrigatório.
5. A
linguagem:
Tudo
indica que deveria ser usada uma linguagem formal,
objetiva e impessoal, devido
à natureza informativa do texto e a uma orientação explícita da prova, que diz:
Você ficou responsável por elaborar
uma síntese (...) que deverá ser escrita em registro formal (obs: o negrito
está presente na versão original).
Enfim,
essa é a minha análise do primeiro gênero. Não é nada oficial, apenas a leitura
que eu fiz da proposta: por isso, não fique desesperado se você tiver feito
algo diferente do que eu mencionei aqui.
Amanhã, se
tudo der certo, eu posto o comentário do segundo gênero (carta-convite).
Até breve.