segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo e o sagrado

Os terroristas que invadiram a redação do Charlie Hedbo, no dia 8 de janeiro de 2015, e assassinaram 12 pessoas, entre elas um guarda muçulmano, lutavam por aquilo que consideram sagrado. Ao sair do prédio, afirmaram ter vingado o profeta Maomé, deixando claro que se viam como guerreiros com uma missão sagrada. Para quem estiver curioso, o crime dos franceses do Charlie foi retratar, em cartuns humorísticos, o fundador do islamismo, o que muitos muçulmanos consideram uma ofensa intolerável.

A relação entre a religião islâmica e a violência é um terreno pantanoso. Não faltam analistas afirmando que o atentado nada tem de religioso e que muçulmanos de verdade jamais recorrem à violência. Ao mesmo tempo, mesquitas foram apedrejadas em várias regiões francesas e há políticos defendendo o aumento das restrições à imigração e a volta da pena de morte na França. Não é difícil prever um acirramento dos embates de fundo religioso, nos moldes maniqueístas do “Islã vs Civilização”.

Enquanto isso, no Brasil, as pessoas, em sua maioria, afirmam estar revoltadas e chocadas com o ocorrido. Muitas aproveitam para reafirmar a superioridade do cristianismo sobre o islamismo. E várias fazem comentários do tipo “não estou defendendo os terroristas, mas é isso que dá ficar ofendendo a religião dos outros”.

É esse tipo de pessoa que, se não pega armas de verdade, incentiva a violência. Pessoas que julgam a religião superior a todas as demais instituições humanas. Pessoas que “compreendem” o direito dos religiosos de se defender, porque, afinal, o respeito a sua fé é algo sagrado para eles. E, para defender o que é sagrado, os fanáticos teriam direito a reações um pouco mais “extremas” do que a maioria de nós.

Toda pessoa, a seu modo, luta pelo que é sagrado. Se parece que algumas pessoas fazem isso e outras não, é mais pela existência de várias possíveis acepções para a palavra “sagrado”. Para mim, assim como para muitas outras pessoas, cartunistas ou não, francesas ou não, a liberdade de expressão é sagrada. O direito de criticar ideias (religiões são ideias, tão sujeitas à discordância quanto sua opinião sobre cinema ou política) é sagrado. O direito de não pertencer a religião nenhuma é sagrado. O direito de fazer todas essas coisas sem temer um ataque de fanáticos religiosos é sagrado.

O semanário Charlie Hebdo já havia sido atingido por uma bomba incendiária. Seus profissionais sabiam do perigo, mas continuavam trabalhando. Foi a maneira que encontraram para mostrar o quanto a liberdade de expressão era sagrada para eles.
Não é que a sociedade ocidental, “desalmada”, não tenha nenhum apreço pelo sagrado: a verdade é que os valores que, cada vez mais, vão se tornando dominantes nas sociedades modernas incluem o uso da palavra, e não da violência, como maneira de espalhar ideias. Querer a eliminação da religião islâmica pela força, expulsar imigrantes e reinstituir a pena de morte na Europa, como alguns políticos defendem, é retroceder décadas ou séculos na evolução das sociedades.

Alguns dirão que a sociedade já está regredindo, que hoje a intolerância está maior que no passado. Não é verdade: o mundo, de maneira geral, nunca foi tão tolerante nem tão avesso ao totalitarismo. Se ataques como o do Charlie Hebdo ainda acontecem, a revolta que eles causam é cada vez mais generalizada.


A liberdade, especialmente de pensamento e opinião; a tolerância; o respeito às pessoas (não às ideias; não confunda); a compreensão da diversidade; o horror ao totalitarismo: são esses os pilares que formam os valores das pessoas racionais do século XXI, com ou sem religião. Quem acredita que isso é sagrado também precisa aceitar que há pessoas que pensam o contrário. E precisa lutar pelo que acha que é sagrado com ideias, não com violência. Caso contrário, a luta está perdida antes mesmo de começar.

2 comentários:

  1. A charge foi muito mais achincalhe que humor. Mostrar maome de quatro ou a trindade numa suruba só é engracado pra quem tem odio disso. Esperava mais profissionalismo do jornal.

    E cicero, o argumento da "liberdade de expressao" ser sagrada pro jornal, nao sei se cola, se ofendessem minha mae em nome disso eu tambem nao gostaria. N foi certo o ataque terrorista, mas o sentimento de ofensa é o mesmo (senao pior). Entao a pergunta que fica ao charlie hebdo é.... pra quê,cara?...

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  2. Escrevi uma resposta antes, mas acho que não saiu... aqui vai uma segunda tentativa.
    Oi, Túlio. Obrigado pelo comentário. Saudades das nossas discussões sobre lógica no Elite.
    Sobre ofender sua mãe, releia, por favor, dois trechos do texto:

    1. O direito de criticar ideias (religiões são ideias, tão sujeitas à discordância quanto sua opinião sobre cinema ou política) é sagrado.

    2. o respeito às pessoas (não às ideias; não confunda).

    Ou seja: há uma enorme diferença entre ofender pessoas e criticar ideias. Se alguém ofender sua mãe, ela tem todo o direito (na minha opinião) de buscar reparação. Se alguém critica, mesmo que de modo ofensivo, a sua religião, suas preferências políticas ou seu gosto musical, o máximo que você pode fazer (novamente, na minha opinião) é mostrar que suas ideias são válidas. E como fazer isso? com mais ideias, expostas de modo claro e coerente.

    Agora, uma pergunta honesta. Só estou fazendo porque li essa crítica em vários momentos e, como você é uma das pessoas mais inteligentes que eu vi dizendo isso, acho que pode me dar uma resposta racional: qual é a diferença objetiva entre o achincalhe e o humor? O que eu gosto é humor e o que eu não gosto é achincalhe? Se alguém ri de um cartum com a Trindade em uma suruba, eu posso dizer que a pessoa está errada? Com base em quê? Nas minhas preferências pessoais?

    Por fim, acho que dá para responder à pergunta do "pra quê, cara?": publicações satíricas costumam fazer sátiras para mostrar que tudo está aberto à crítica e para provocar a reflexão (não em todas as pessoas, obviamente; mas muitas, quando veem algo tão radical, saem de sua zona de conforto, começam a se perguntar sobre o motivo de terem se chocado tanto e acabam aprendendo mais sobre os próprios valores e preconceitos). Muitas críticas (como a capa do papa aconselhando um padre pedófilo a fazer cinema, como Polanski) apontam as incoerências e hipocrisias da sociedade. Existem, portanto, muitos motivos para fazer críticas ácidas, humor (mesmo que algumas pessoas achem sem graça) e até achincalhe (mesmo que quase ninguém consiga definir o que isso significa).

    Abraços.

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