quarta-feira, 9 de novembro de 2011

De onde vêm as lendas de Redação, parte 4 – Terra sem lei (ou: aplausos para o Hino Nacional)


Neste último post (por enquanto!) dedicado às lendas da Redação, vou falar um pouco sobre minhas teorias que tentam explicar por que essa matéria é terreno tão fértil para afirmações descabidas.
Nos posts anteriores, eu comentei que as regras dos vestibulares e concursos sérios têm uma razão de ser. Não faz sentido acreditar que uma prova de redação sempre vai ser decidida pela sorte ou pela subjetividade do corretor, nem que os critérios para pontuar os textos são escolhidos para confundir os candidatos. A verdade é que as provas sérias, como Unicamp, Fuvest e Unesp, normalmente vão premiar os candidatos que têm melhor domínio da leitura e da escrita.
Há uma série de mecanismos para garantir essa lisura no processo. Um método usado por bancas corretoras, e que muitos críticos da redação no vestibular desconhecem, é a presença de dois corretores por redação (sendo que um não conhece a nota dada pelo outro). Assim, se um deles der uma nota alta devido a alguma razão subjetiva, o outro provavelmente dará uma nota mais próxima da merecida. Se houver uma discrepância maior que a tolerável, o texto irá para um terceiro corretor, normalmente alguém mais experiente, que corrigirá a redação novamente. Outras características que diminuem a subjetividade na correção de redações de vestibular são a presença de critérios claros e o treinamento dos corretores. É perfeitamente possível, dessa forma, organizar uma prova de redação que não dependa do acaso.
Se isso é verdade, então por que tantos estudantes acreditam no contrário, ou seja, que uma redação boa é aquela que agrada à subjetividade de um corretor, e que há regras secretas que levam um texto a ser bem avaliado?
A triste resposta: porque isso TAMBÉM é verdade.
Confuso? Deixe-me explicar melhor: a maioria das pessoas não conhece em detalhes como as provas de vestibular, concurso ou ENEM são elaboradas. Durante toda a sua vida de estudante, o que elas conhecem é o que vêem na escola. E, infelizmente, o que foi dito aqui sobre a precisão na correção de textos não se aplica à imensa maioria das escolas. E nem sempre é por falta de vontade.
Para entender isso, vamos lembrar que a correção de redações é algo caro e difícil de fazer. É muito mais fácil para um professor corrigir provas em formato de teste do que analisar as redações de seus alunos; e é ainda mais trabalhoso dar um retorno aos estudantes, escrevendo comentários em cada texto para explicar os motivos da nota e o que fazer para melhorar nas próximas redações. Ter dois corretores por texto, então, é virtualmente impossível: isso dobraria os custos e aumentaria consideravelmente o tempo despendido na correção. Sendo assim, não é de causar espanto o fato de que a maioria das escolas, públicas e particulares, adote um sistema de correção de redações em que a subjetividade tem um peso desproporcional.
Se a correção nos vestibulares sérios é objetiva, mas o julgamento das redações nos 12 anos de escola é subjetivo, qual será a impressão que ficará marcada nos estudantes?
A própria essência da disciplina de Redação dificulta o trabalho do professor: não há, como em matemática, fontes seguras para determinar o que é certo e o que é errado em um texto. As ‘regras’, por assim dizer, estão em constante mudança. Essa situação de incerteza leva bons professores a se manterem em permanente atualização, mas é uma desculpa perfeita para que professores mal preparados criem suas próprias regras e as imponham a seus alunos. E a universidade não ajuda muito nesse sentido. Na maioria dos cursos de Letras, o tempo dedicado a preparar os estudantes para o ensino de Redação é ínfimo. No fim, depende do próprio licenciado completar seus estudos, formar suas próprias teorias e testá-las na prática (se algum professor de Redação está lendo isso, por favor escreva para mim contando sua experiência).
Um exemplo: se um matemático afirmar que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 210 graus, fica fácil mostrar que isso não é verdade. Se um professor de História disser que Napoleão se aliou a Genghis Khan para invadir a Guatemala em 1827, qualquer aluno com um pouco de conhecimento vai perguntar de onde seu professor tirou essa informação, que contradiz todo o conhecimento à disposição.
Mas, no caso da Redação, ocorre um fenômeno muito curioso: normalmente, a prova de que uma afirmação é verdadeira está no julgamento da própria pessoa que fez a afirmação. Em termos mais práticos: se um professor de Redação afirma que um texto dissertativo precisa ter três parágrafos, esse mesmo professor pode fazer sua afirmação se tornar verdadeira: basta levar esse critério em conta quando for corrigir as redações. Os alunos verão que escrever quatro parágrafos faz com que a nota seja baixa e passarão a aceitar a ‘regra’ mencionada pelo professor como verdade. Mais tarde, quando estiverem se preparando para uma prova de vestibular, muitos desses alunos ficarão chocados ao descobrir que um texto dissertativo não precisa ter exatamente três parágrafos. E, infelizmente, boa parte deles vai tomar isso como prova de que a Redação é uma terra sem lei e que, portanto, não vale a pena estudar e praticar. Some-se a isso o fato de que as pessoas, especialmente pré-vestibulandos, em geral querem regras e, quando mais absolutas, melhor. Parece mais fácil se passar por um bom professor quando se diz “sempre faça isso, nunca faça aquilo” do que quando se diz “há ocasiões em que é melhor fazer isso ou aquilo, mas você vai ter que ler muito e escrever muito para conseguir julgar por conta própria”.
Não quero dizer aqui que eu tenho todas as respostas verdadeiras e propor uma solução definitiva para os problemas do ensino de Redação. Mas um bom primeiro passo seria que os professores e alunos dessa matéria passassem a se questionar mais sobre os motivos por trás das regras, ao invés de aceitá-las passivamente. A atitude questionadora (não de combate, veja bem, mas de curiosidade honesta) não apenas serve para tirar alguns tabus do caminho, mas também é uma característica comum entre as pessoas que escrevem bem.
P.S. e explicação do título: Certa vez, eu estava assistindo a um jogo do Corinthians em um bar e foi tocado o Hino Nacional no estádio. Alguém em uma mesa ao lado comentou que não era permitido aplaudir após o hino, mas que o povo era muito ignorante e aplaudia mesmo assim. Um dos integrantes do grupo (vamos chamá-lo de “Zé”) perguntou, em tom contrariado: “por que não pode aplaudir depois do hino?”. Aparentemente, ninguém sabia, e ninguém conseguiu imaginar uma razão minimamente plausível. O máximo que disseram foi “por respeito”. Ele não pareceu satisfeito (eu também não vejo por que o aplauso seria considerado desrespeitoso), e disse que achava que o Hino Nacional podia, sim, ser aplaudido (isso tudo foi enquanto o hino era tocado, o que levanta outra questão: conversar durante o hino é permitido?). As pessoas disseram ter certeza de que não podia aplaudir: “a professora disse”, “alguém falou, mas não lembro quem...”; no final, os torcedores no estádio aplaudiram e o Zé concluiu que tinha razão: “Estão vendo? Pode aplaudir sim. Prova disso é que eles aplaudiram e não aconteceu nada com eles!”. Fui obrigado a concordar, e mais tarde descobri que existe mais gente com a mesma opinião: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/devese-ou-nao-aplaudir-o-hino-nacional. Fico me perguntando se os amigos do Zé não seriam justamente as pessoas que espalham lendas de Redação por aí e dificultam meu trabalho...
Até a próxima.

4 comentários:

  1. Olá Cícero, Rodrigo turma Noturno...
    Pra começo de conversa, me culpo. Me culpo por dois motivos: não ter lido seu blog antes, e ter escolhido a madrugada para a primeira leitura. Não imaginava que não conseguiria parar de ler logo na primeira ou segunda postagem e acabei por ler E reler todos os posts, tudo de uma vez. Enfim, apesar do horário(5:45)as leituras estão feitas e foram deveras prazerosas.
    A questão do ensino de redação é algo que me encafifa há tempos, por criar um paradoxo na cabeça de nós, alunos. Ao mesmo tempo que vejo durante a maioria da minha vida escolar, um certo desprezo pela redação, por parte de alunos e professores, vejo um vestibular exigindo da disciplina de Redação um resultado no mínimo excelente(visto que vale 50% da prova total). E aí, como lidar? Alias, acho que é desse paradoxo que vem o mal desempenho geral dos alunos: a falta de incentivo por parte de escola de incentivar à escrita aos seus alunos. Não vejo nem lógica nisso pra falar bem a verdade... pois, se a escola é a "preparação para a vida" - com toda certeza a escrita é uma situação que iremos encarar com muito mais frequência do que as equações de Clapeyron, ou o Teorema dos Cossenos. Por sorte, acabei me interessando pela escrita desde pequeno por incentivo dos meus pais, então mesmo com toda a pressão "contra" do mundo escolar venci essa parte sem maiores problemas. Enfim, divaguei. Sempre escrevo demais, preciso me controlar.
    De qualquer maneira, como fora combinado em sala, comento aqui para lembra-lo(se possível) de dar uma olhada nas redações passadas da Cásper Líbero. (: De qualquer maneira, já deixo aqui o obrigado pelas aulas de todo este ano :D
    Um abraço, Rodrigo.


    PS: AH! Se puder ó... meu blog com algumas redações antigas e pensamentos aleatórios:
    http://insigneobrigatoriedade.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  2. Oi, Rodrigo. Obrigado pelo comentário e lemebre-se de que você sempre será bem vindo a postar suas divagações por aqui. Quanto aos temas da Cásper Líbero, olhei os dos últimos anos e acredito que você não terá problemas. Notei uma variedade nos gêneros pedidos (nem sempre há uma dissertação, por exemplo), mas sempre dentro de parâmetros razoáveis (como a carta e o artigo de opinião).
    O tema mais recente (2011) é o mais vago que eu já vi. Embora haja uma orientação de qual material usar como coletânea, ainda assim a proposta é muito aberta e imagino que a banca deva ter aceitado praticamente qualquer problema social brasileiro que o candidato quisesse discutir. Em provas assim, que parecem valorizar a criatividade do autor, é mais comum que a correção se volte ao aspecto gramatical do texto. Além disso, foi explicitamente indicado que o candidato não deve se prender a clichês, o que me leva a crer que um projeto de texto bem construído, com ideias que fujam do senso comum, é um primeiro passo importante.

    Já no tema de 2010, a presença de duas cartas e nenhuma dissertação nos temas reforça que a Cásper Líbero não quer valorizar o candidato que memorizou algumas fórmulas. Por esse motivo, creio que encarar a prova mais ou menos como a da Unicamp é também uma estratégia válida.
    (tenho que sair agora, escrevo mais sobre esse assunto à noite).
    Abraços.
    Cícero.

    ResponderExcluir
  3. E.L.
    Seus textos são excepcionais! Entrar no seu blog é querer ter um aprendizado intenso e perceber o quão inteligente você é! Entender esses assuntos é muito importante, visto que fazem parte do nosso cotidiano. A redação é desvalorizada, as pessoas não sabem, na maioria das vezes, escrever bem o que dificulta a comunicação, pois reflete o vocabulário e o conhecimento das pessoas, que, talvez por isso, não falem de forma plenamente adequada.

    ResponderExcluir
  4. Obrigado pelo comentário e pelos elogios, E.L.; espero manter seu interesse com os próximos posts. Pretendo formar aqui neste blog um curso completo e aprofundado de redação, mas aos poucos, pois minha principal preocupação é a qualidade e não a velocidade dos textos.
    Abraços.
    Cícero.

    ResponderExcluir