segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Espelho, espelho meu (um texto sobre ironia, espantalhos e reacionários)

Ontem, 3 de novembro de 2013, o cronista Antônio Prata (filho do Mário Prata) publicou na Folha de S.P um texto que ainda vai dar margem a bastante discussão. Trata-se de um suposto manifesto pró-direita, em que o autor estaria revelando sua mudança de posição e fazendo uma defesa do reacionarismo “grosseiro, raivoso e estridente”. Se você já leu, pode pular os próximos seis parágrafos. Caso contrário, confira:

Há uma década, escrevi um texto em que me definia como "meio intelectual, meio de esquerda". Não me arrependo. Era jovem e ignorante, vivia ainda enclausurado na primeira parte da célebre frase atribuída a Clemenceau, a Shaw e a Churchill, mas na verdade cunhada pelo próprio Senhor: "Um homem que não seja socialista aos 20 anos não tem coração; um homem que permaneça socialista aos 40 não tem cabeça". Agora que me aproximo dos 40, os cabelos rareiam e arejam-se as ideias, percebo que é chegado o momento de trocar as sístoles pelas sinapses.

Como todos sabem, vivemos num totalitarismo de esquerda. A rubra súcia domina o governo, as universidades, a mídia, a cúpula da CBF e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, na Câmara. O pensamento que se queira libertário não pode ser outra coisa, portanto, senão reacionário. E quem há de negar que é preciso reagir? Quando terroristas, gays, índios, quilombolas, vândalos, maconheiros e aborteiros tentam levar a nação para o abismo, ou os cidadãos de bem se unem, como na saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que nos salvou do comunismo e nos garantiu 20 anos de paz, ou nos preparemos para a barbárie.

Se é que a barbárie já não começou... Veja as cotas, por exemplo. Após anos dessa boquinha descolada pelos negros nas universidades, o que aconteceu? O branco encontra-se escanteado. Para todo lado que se olhe, da direção das empresas aos volantes dos SUVs, das mesas do Fasano à primeira classe dos aviões, o que encontramos? Negros ricos e despreparados caçoando da meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral.

Antes que me acusem de racista, digo que meu problema não é com os negros, mas com os privilégios das "minorias". Vejam os índios, por exemplo. Não fosse por eles, seríamos uma potência agrícola. O Centro-Oeste produziria soja suficiente para a China fazer tofus do tamanho da Groenlândia, encheríamos nossos cofres e financiaríamos inúmeros estádios padrão Fifa, mas, como você sabe, esses ágrafos, apoiados pelo poderosíssimo lobby dos antropólogos, transformaram toda nossa área cultivável numa enorme taba. Lá estão, agora, improdutivos e nus, catando piolho e tomando 51.

Contra o poder desmesurado dado a negros, índios, gays e mulheres (as feias, inclusive), sem falar nos ex-pobres, que agora possuem dinheiro para avacalhar, com sua ignorância, a cultura reconhecidamente letrada de nossas elites, nós, da direita, temos uma arma: o humor. A esquerda, contudo, sabe do poder libertário de uma piada de preto, de gorda, de baiano, por isso tenta nos calar com o cabresto do politicamente correto. Só não jogo a toalha e mudo de vez pro Texas por acreditar que neste espaço, pelo menos, eu ainda posso lutar contra esses absurdos.

Peço perdão aos antigos leitores, desde já, se minha nova persona não lhes agradar, mas no pé que as coisas estão é preciso não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente. Do contrário, seguiremos dominados pelo crioléu, pelas bichas, pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP, essa gentalha que, finalmente compreendi, é a culpada por sermos um dos países mais desiguais, mais injustos e violentos sobre a Terra. Me aguardem.


Como o texto se constrói sobre o recurso da ironia, é natural que haja interpretações equivocadas e literais. Afinal, ironia é um recurso complicado e que depende de alguns elementos para ser compreendido, como o contexto ou o acúmulo de absurdos. Até aí, as cousas. 

O que realmente me surpreendeu nesse caso em particular foi o fato de que muitos leitores pertencentes à categoria criticada elogiaram o texto, ou seja, reconheceram-se nele e chegaram a louvar a coragem do autor, por ter publicado ideias tão contrárias à ditadura esquerdopata que o país vive. Duvida? Eu também duvidaria, se alguém me contasse a história dois dias atrás. Mas veja só alguns comentários ao texto do Prata, publicados no site da Folha:

Parabéns Antonio Prata!Estamos vendo reações e isso é maravilhoso!!! A casa está caindo pra esquerda porca no Brasil. FORA VERMELHOS IMUNDOS.

Muito bom o artigo. Uma coisa é certa: essa mania do "politicamente correto" está nos obrigando a engolir cada entulho!

Pena que poucas pessoas têm essa coragem de assumir que mudou de opinião mesmo com todas as evidências. Parabéns Antonio Prata, você não vai se arrepender.

O texto não tem nada de irônico como insinuam em alguns comentários. A esquerda articulada não admite pensamentos diferentes da sua doutrina e logo procura desmerecer ou tachar quem tem opiniões distintas. Para essa esquerda só existe uma verdade; a deles, e a querem enfiar “goela abaixo“ a toda sociedade. Gostaria de saber como contaríamos hoje , às nossas crianças, aquela fábula da cigarra e a formiga.

É claro que alguns conservadores mais inteligentes se ofenderam e acusaram Antônio de fazer um espantalho (falácia que consiste em apresentar uma caricatura das opiniões de um opositor e criticar não as ideias que ele realmente defende, mas sim essa versão exagerada). Mas... se tantas pessoas se enxergaram no texto e gostaram do que viram, isso é forte indício de que o retrato hiperbólico feito por Antônio Prata está mais próximo de uma fotografia do que de uma caricatura.

É aí que mora o perigo: embora seja perfeitamente válido discutir a necessidade ou não de cotas, reservas indígenas, socialismo, ensino de religião, liberação de drogas, aborto, leis anti-homofobia etc, é assustador o fato de algumas pessoas aceitarem como verdadeiras e defenderem as visões exageradas, irracionais e violentas apresentadas por um jornalista em um exercício de humor (digo “algumas” porque estou me baseando nas que responderam ao artigo; quantas mais o leram e se recolheram em seguida a seus pensamentos, felizes por terem encontrado um representante de seus ideais tão vilipendiados?).

Até anteontem, eu tinha uma resposta pronta para argumentos como “os esquerdopatas PTralhas vão acabar com a propriedade privada” e “os reaças TFP querem fazer o mundo voltar à Idade Média”. Eu simplesmente dizia algo do tipo: “essas versões são exageradas; ninguém, a não ser um ou outro sociopata, realmente acredita nisso”. Ontem, descobri que há sim pessoas que defendem com orgulho a versão mais absurda e ignorante de suas ideias. Prometo formular outra resposta para discussões do tipo.

P.S.: antes que me acusem de ser um intelectual de esquerda (não me considero esquerdista e muito menos intelectual), quero deixar claro que só estou comentando aqui sobre a minha área de formação, que envolve a escrita, a leitura e o que elas revelam sobre o pensamento. Não estou dizendo que os conservadores são todos realmente como o Antonio Prata descreveu. Aliás, quem quiser encontrar argumentos equivalentes aos meus para criticar os leitores acríticos de esquerda (pode ter certeza de que eles existem), é só buscar nos comentários ao texto “Guinada à esquerda”, de autoria de Rodrigo Constantino, no blog da Veja. Ainda não vi nenhum, mas estou certo de que, em algum momento, algum esquerdista que se enxergou no espantalho feito por Constantino aparecerá elogiando o autor e o parabenizando por ter finalmente visto a luz do socialismo. Ou não?

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